manual
do
assassínio
político
INTRODUÇÃO
Portugal
foi um dos primeiros países a abolir a pena de morte mas está bem longe de
abolir a condenação à morte, política e social, que é publicamente feita na
Imprensa, com base em «fontes policiais», antes mesmo de os tribunais se
pronunciarem.
Imagine
o leitor que, por denúncia, conspiração, inveja ou — mesmo — acto eventualmente
ilegal, é posto sob suspeita e objecto de investigação policial. Ninguém, como
se costuma dizer, está acima de qualquer suspeita. Mas, depois, com base num
bom trabalho ou não, a investigação conclui que, sim, o leitor é culpado e é
proposta ao Ministério Público a sua acusação. E ela surge. Em teoria, cabe aos
tribunais confirmarem a acusação, condenarem, anularem a acusação ou declararem
a inocência. E, até haver esse juízo derradeiro, como mandam o bom senso e as
regras democráticas, o leitor é inocente.
Mas,
na prática, o que se passa é radicalmente diferente: antes dos juízes, as
«fontes policiais» e muitos jornalistas tornam-se o executor da pior das
mortes. E de chofre, sem aviso. Atingido por golpes que nunca antecipou, se
conseguir libertar-se das teias dessa morte social e política, o leitor nunca
mais se libertará da acusação, consiga ou não ultrapassar o choque inicial e
reagir. É uma verdadeira condenação à morte que destrói pessoas e que devasta
famílias. Um dia, um tribunal considerá-lo-á inocente, ou anulará a acusação,
mas o mal está irremediavelmente feito.
Isto
aconteceu, em 1994, a um cidadão da República, na capital portuguesa: João
Raimundo foi detido pela Polícia Judiciária em Lisboa à hora do almoço. Ia com
a mulher almoçar. Só na manhã do dia seguinte, estando ainda preso, é que um
tribunal ordenou a sua prisão preventiva. Podia não o ter feito. Mas o certo é
que o destino do homem e da sua família ficou para sempre traçado: antes mesmo
daquela primeira decisão do tribunal, a detenção já estava justificada — «terrorismo».
E justificada em todos os órgãos de comunicação social.
A
detenção desse homem, professor e presidente do Instituto Politécnico da
Guarda, foi o ponto mais alto de um estranho processo judicial e político. Que
ficou marcado pela intenção deliberada de, pelo menos, o afastar do cargo e de
atingir a sua mulher Marília (ex-governadora civil, ex-secretária de Estado e
deputada à Assembleia da República). Com base numa convergência tão grande de
acasos e de intervenções que é difícil não pensar numa conspiração.
Em
Janeiro de 1999, o Supremo Tribunal de Justiça anulou toda a acusação mas não o
período sombrio em que João Raimundo, condenado à morte política e social pela
Imprensa e pelas suas «fontes policiais», esteve preso durante um ano nas piores
circunstâncias. Os meios que tinha ao seu alcance para se defender e o apoio de
sua mulher e dos amigos ajudaram-no a sobreviver. Mas é legítimo pensar que,
sendo outras as pessoas e as circunstâncias, nem João Raimundo nem a família
sobreviveriam a esta verdadeira história de terror, como um dia a classificou o
criminologista, e antigo agente da Polícia Judiciária, Francisco Moita Flores.
E nunca saberemos se outras pessoas e outras famílias não terão, anonimamente,
soçobrado em situações idênticas.
Este
livro, Manual do Assassínio Político,
é a história desse caso, que ficou conhecido pela designação apressada de «caso
da “lista negra” da Guarda».
Conhecendo
as pessoas e, em parte, algumas das circunstâncias, comecei a trabalhar neste
livro em 1997, utilizando como matéria-prima documentos oficiais (que integram
o processo) e textos publicados na Imprensa escrita.
À
medida que fui conhecendo documentos e recordando textos já lidos, descobri os
bastidores de um mundo político e social onde uma crise política — em 1994 e
1995 — e a aparência de mudança de regime criaram um quadro que convidava à
conjugação organizada de esforços para destruir pessoas incómodas.
Não
há, neste livro, intenção nenhuma de produzir um trabalho académico nem de
fazer uma reportagem nem de afirmar uma investigação com tese dentro. Foi
intenção do autor contar, apenas, uma história real, de modo tão factual quanto
é possível, colocando as personagens certas nos lugares certos, descobrindo
como se sobrevive às situações mais adversas e como, também entre nós mas sem
um John Grisham que o relate, há advogados que triunfam e cuja tese é acolhida
pelas mais elevadas instâncias de decisão.
Ao
escrever este relato, descobri vilões e heróis (e estes foram--no João
Raimundo, Marília Raimundo e o advogado Nuno Godinho de Matos) e os bastidores
de algo tão inquietante que parece, por vezes, inacreditável.
Convidando
o leitor a acompanhar-me nesta viagem perturbadora, devo fazer uma nota prévia.
Uma
leitura apressada ou qualquer consciência de culpa podem fazer «tresler» e
gerar a impressão de que há nestas páginas uma crítica generalizada a duas
respeitáveis instituições: a Imprensa e a Justiça. Mas nada, no entanto, seria
mais falso.
As
opiniões, produzidas a quente e mal documentadas, a ausência de confirmação do
que dizem as «fontes» sem nome, a urgência de vender a todo o custo, a sede de
sangue e a luta sem tréguas nem escrúpulos por mais audiências não
caracterizam, em absoluto, a Imprensa e os jornalistas. A Justiça, por sua vez,
lançou-se mal nesta aventura mas as instâncias máximas de decisão (o Supremo
Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional) corrigiram o que de mal tinha
sido feito, cumpriram o papel que a República lhes comete e foram ao encontro
daquilo que o cidadão comum delas espera. Apenas há a lamentar que, nessa
altura, a Imprensa não tivesse suspendido a sua avidez por más notícias para
dar, por uma vez, boas notícias...
Parte I
Inimigos
a abater
CAPÍTULO 1
JOÃO E MARÍLIA RAIMUNDO
João Raimundo nasceu no
Entroncamento em 24 de Junho de 1943. O pai era ferroviário, sem actividade
política mas muito crítico do regime desde o dia em que ouviu Salazar dizer que
um pão e uma sardinha eram suficientes para alimentar um operário dos
caminhos-de--ferro.
É só em 1948 que, devido à mudança
do local de trabalho do pai, João se fixa na Guarda. Aí, como qualquer criança
de um dos centros urbanos mais distantes de Lisboa, faz o liceu, começa a
trabalhar, e casa, em 1968, com Marília Dulce Coelho Pires Morgado, filha de
uma das melhores famílias da Guarda.
O percurso de ambos não é
totalmente convergente mas, a certa altura, a política e o PSD vão uni-los.
Marília, maria-rapaz quando criança e primogénita de duas irmãs, fizera o curso
de Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa, preparando-se para ser
professora. João Raimundo diversifica mais as suas actividades: vende carros de
uma marca japonesa com êxito considerável, cria a sua própria empresa (Morgado
& Raimundo) e vai ser, também, professor do ensino secundário antes de ser
convidado a presidir à comissão instaladora do Instituto Politécnico da Guarda
em 1985, para a qual é nomeado por despacho do ministro da Educação em 19 de
Julho de 1985.
Ambos entram na vida política
activa, partilhando dos mesmos ideais: uma ideia de social-democracia que
Francisco Sá Carneiro, alguns «liberais» do Estado Novo e opositores ao regime
caído em 1974 apresentam como objectivo do então Partido Popular Democrático
(PPD). Que, denominado depois Partido Social Democrata (PSD) ficou «condenado»
a governar sozinho o País durante dez anos, primeiro com maioria simples, em
1985, e depois com maioria absoluta, de 1987 a 1995.
A vida política e os triunfos do
PPD/PSD sorriram a João e Marília embora o dinamismo de que dessem provas lhes
tivesse valido alguma incomodidade por parte não apenas dos seus adversários
políticos mas também por parte de correlegionários. E de sectores que, mais do
que pelas ideias, se aproximaram do PSD porque este era o partido de governo e
não por simpatia doutrinária.
João Raimundo, militante do PSD,
tornou-se sindicalista no movimento sindical de professores que daria origem à
Federação Nacional dos Sindicatos da Educação (FNE), da também social-democrata
Manuela Teixeira, foi fundador, sócio n.º 1 e presidente do Sindicato dos
Professores da Zona Centro, presidente da assembleia geral da FNE e dos
Trabalhadores Sociais-Democratas (TSD), estrutura laboral do PSD, e membro
eleito do Secretariado Nacional da União Geral de Trabalhadores (UGT), a
central sindical onde convergiram PS e PPD.
A estas funções, essencialmente no
âmbito da sua actividade sindical, João Raimundo acrescenta aquela que será a
fonte de um poder que, embora localizado, vai assustar muita gente: a
presidência da comissão instaladora do Instituto Politécnico da Guarda (IPG),
cargo de que toma posse em 8 de Agosto de 1985. É o começo de um mandato de
nove anos, que será abruptamente interrompido em 15 de Novembro de 1994.
É no IPG que João Raimundo ganha
maior notoriedade, à medida que o instituto vai crescendo, a ponto de ser
considerado a maior indústria do distrito devido à sua capacidade de gerar
proventos que beneficiam toda a população.
Marília sobe no PSD os vários
degraus do triunfo político. Em 1979, é eleita deputada à Assembleia da
República nas listas da coligação, então denominada como Aliança Democrática,
que reuniu o PPD/PSD e o CDS, de Freitas do Amaral e Amaro da Costa.
Governadora civil, na Guarda,
secretária de Estado dos Ensinos Básico e Secundário e um dos pilares do PSD
beirão, Marília é inevitavelmente associada à visibilidade política que João
adquire e nunca faltarão as vozes que chegam a atribuir à secretária de Estado
Marília Raimundo, quando ela ainda nem sequer o era, a nomeação do presidente
de comissão instaladora João Raimundo mesmo contra a factualidade das datas.
Quando João Raimundo é nomeado para
o IPG, em 19 de Julho de 1985, tinha então o governo como primeiro--ministro o
futuro Presidente da República, Mário Soares, e, como base, o entendimento —
que seria sempre conhecido por «bloco central» — entre o Partido Socialista
(PS) e o PPD/PSD. Com uma lógica clara em matéria de preenchimento de lugares
públicos: os dois partidos iriam dividi-los no Governo, no aparelho de Estado e
em toda a administração.
João Raimundo tem, para essa
nomeação, dois padrinhos, ambos por sinal do PS e naturais da Guarda: Almeida
Costa, um secretário de Estado do PS no Ministério da Educação (onde João de
Deus Pinheiro substituíra o então PPD José Augusto Seabra em Fevereiro do mesmo
ano), e Abílio Curto. Este, o dirigente do PS que foi mantendo sempre a
presidência da Câmara da Guarda até enfrentar um processo judicial em 1996,
chega a reivindicar, publicamente, em declarações ao Diário de Notícias em Novembro de 1993, a autoria da proposta de nomeação
de João Raimundo na lógica da divisão de cargos públicos entre os dois
partidos.
Marília Raimundo só chega ao
Ministério da Educação em 8 de Novembro de 1985, pela mão de João de Deus
Pinheiro, nessa altura a bisar a pasta da Educação, já depois das eleições que
deram a primeira vitória de uma série de três ao então presidente do PSD,
Cavaco Silva. E quatro meses depois, note-se bem, da nomeação do marido como
presidente do IPG.
O «bloco central» desfizera-se,
entretanto, e o Governo era outro, integralmente formada pelo PSD.
É assim que, estando João já na
presidência do IPG, Marília assume as funções de secretária de Estado dos
Ensinos Básico e Secundário, cargo onde permanece até ao Verão de 1987, quando
novas eleições legislativas dão a segunda vitória eleitoral e a primeira
maioria absoluta a Cavaco Silva. A irresistível ascensão deste algarvio e do
PSD vão marcar a vida do casal (que chega a hospedá-lo em casa, nos primeiros
tempos de campanha do novo presidente do PSD) nas horas felizes e nas horas
infelizes.
O PSD cresceu nesses anos... e o
IPG também.
Na Guarda, distrito de 5 510
quilómetros quadrados com 14 concelhos, 336 freguesias e, segundo o censo de
1991, 188 mil habitantes (90 mil homens, 98 mil mulheres), o PSD é,
tranquilamente, a força política dominante, tendo subido de 33,6 por cento dos
votos expressos nas eleições de 1985 para 60,0 por cento em 1987... com um
deslize posterior para 58,6 por cento em 1991. O PS, nesses tempos, não
consegue mais do que manter a presidência da Câmara Municipal e a situação só
melhorará em 1995, quando o PS sobe para 39 por cento, fasquia para a qual
também acaba por cair o PSD, ficando cada um com dois deputados quando, antes,
o PSD tinha três e o PS só um.
Quanto ao IPG, numa cidade que já
não vive dos rendimentos dos emigrantes, de onde a indústria se afasta e onde
os têxteis não se afirmam, transforma-se, paulatinamente, na maior fonte de
rendimentos do comércio e dos serviços locais.
O artesão desse êxito é João
Raimundo, que sabe que o seu instituto politécnico só pode crescer quando
estiver dotado de um corpo docente próprio e minimamente estabilizado, com
cursos credíveis e com estudantes que se identifiquem com a própria instituição
e que sejam, como ainda gosta de dizer, os principais propagandistas da sua
escola.
Recusando a ideia de uma
universidade em vez de um instituto politécnico e sendo conhecedor das grande
potencialidades deste sector do ensino superior, o presidente da comissão
instaladora repete, com frequência, que quer que o IPG seja «o melhor instituto
politécnico» e não «a pior das universidades». Aliás, essa orientação está bem
visível na colectânea de 25 discursos que João Raimundo publica no Outono de
1998 com o título Reforçar o Ensino
Politécnico, Desenvolver a Guarda, contendo as intervenções mais
significativas feitas entre 1985 e 1994.
Para o efeito, João Raimundo
desenvolve uma estratégia marcada por um espírito de iniciativa assinalável. E,
dedicando-se quase por inteiro ao IPG, afasta-o do alcance de tentações mais
fáceis: uma inauguração, uma visita partidária, uma sessão mediática com
visitantes governamentais idos de Lisboa... Sem que, no entanto, deixe de
explorar bem as ligações que mantém com o PSD e com o Governo que, sendo o
ministro da Educação João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro, Couto dos Santos
ou Manuela Ferreira Leite, precisa de mostrar — mais para consumo externo do
que interno — a obra feita, que entusiasma, por razões diferentes, a cidade, os
próprios alunos e alguns dos responsáveis dos outros institutos politécnicos,
que parecem menos empreendedores.
Assim, sem fazer do instituto uma
bandeira política (apesar de poder fazê-lo), e numa estratégia que se revelaria
de risco, João Raimundo consegue manter a independência do IPG, afastando-se da
tentação de fazer dele um exemplo de obra governamental e evitando cerimónias
equívocas. É louvável e merece-lhe respeito entre a oposição mais isenta, mas
causa crispações entre os próprios laranjas.
E, com isso, acaba por criar anticorpos de peso. Dentro do instituto e fora
dele.
É o caso do complexo processo
judicial em que é envolvido por um ex-padre e professor do ensino secundário,
Bernardo Duarte. Este, queixando-se de ter sido preterido num concurso público
para preencher as vagas dos quadros docentes do IPG, move-lhe, em 1986, uma
guerra pública que só terminará em Março de 2000.
É o caso da pouca atenção que João
Raimundo dedica aos interesses partidários do PSD. Como, aliás, mais tarde o
comprovará ao Diário de Notícias (6/05/95)
o seu funcionário — ex-adjunto de Marília no Governo Civil, presidente do
Centro Regional de Segurança Social e membro activo do grupo que viria a dar
origem à famosa «lista negra» — Jacinto Dias: «O IPG é, sem dúvida, a
maior obra do Governo no distrito [e] era o maior ponto de ataque ao Governo
que existia no distrito. Tivemos, durante os últimos três anos em que o Dr.
Raimundo foi presidente, muita dificuldade em gerir politicamente a situação.»
Os adversários de João Raimundo não
eram, apenas, internos. A sua actividade sindical vale-lhe, também, um ódio de
estimação por parte dos sindicalistas ligados ao PCP que, tendo rompido em 1979
com o Sindicato dos Professores da Zona Centro (SPZC), formaram nesse ano um
sindicato paralelo com o nome de Sindicato dos Professores da Região Centro
(SPRC) e se integraram na Federação Nacional dos Professores (Fenprof), contra
a FNE de Manuela Teixeira.
Localmente, a sua preponderância no
IPG desagrada, naturalmente, a Abílio Curto e aos socialistas da Guarda, com
quem João Raimundo vai mantendo uma situação de conflito com raízes tão locais
como partidárias.
O seu sucesso, no IPG, converge com
o sucesso, externo, de Marília. Não dependem, politicamente, um do outro mas os
seus críticos dirão sempre que o marido se destaca graças à mulher e que a mulher
se destaca graças ao marido. E, no entanto, é fácil ver como João se afastava
do exercício do poder pelo partido dominante e Marília exercia esse poder, de
acordo com o mandato que lhe estava confiado.
Nascida em 1945, na Guarda, filha
de uma das mais importantes famílias locais, Marília é um caso assinalável de
êxito partidário e político. Dinâmica, enérgica e politicamente muito hábil, é
o n.º 1 do PSD na Guarda, podendo, sem dúvida, considerar como seus os êxitos
eleitorais do partido. Afável, tal como João, é conhecida de toda a gente e
intransigente com os seus adversários. A sua preponderância vale-lhe,
naturalmente, a adesão de todos... mesmo daqueles que, sendo momentaneamente
seus compagnons de route, lhe
voltarão as costas mais tarde. É o caso de Jacinto Dias, João Gonçalves e
Soares Gomes, os founding fathers da
«lista negra».
O PSD vivia, ainda nessa época, num
estado de felicidade política relativa. Mas a situação política começa a
degradar-se e alguns sectores do partido do Governo começam a sentir que se
aproxima um verdadeiro desastre, sensação agravada pelo avolumar de rumores
(rapidamente confirmados) de que o então primeiro-ministro Cavaco Silva queria
afastar-se do partido e do Governo.
Os sinais estavam, à vista e não
deixaram de ser capitalizados pela oposição, como o faria, nas eleições de
1995, o futuro secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro António
Guterres, António José Seguro, candidato pela Guarda premiado com o cargo de
deputado europeu em 1998: «O Banco de Portugal foi para Viseu, a agricultura
depende de Castelo Branco, a Telecom foi para Aveiro, a saúde depende de
Coimbra, a Juventude depende de Viseu» (Semanário,
16/09/95).
As coisas estavam, portanto, mal
para o PSD. A nível nacional e a nível local. E era necessário encontrar
responsáveis.
Em 1993, Marília é chamada a uma
reunião com o futuro sucessor de Cavaco na direcção do PSD, Fernando Nogueira,
então a segunda figura do partido.
Ex-ministro da Justiça, com a pasta
da Defesa Nacional no governo em queda de Cavaco, Fernando Nogueira diz-lhe que
Álvaro Amaro, então secretário de Estado da Agricultura e seu ex-chefe de
gabinete, será o próximo presidente da Comissão Política Distrital da Guarda.
Mesmo sendo natural de Riba Mondego, concelho de Gouveia, e tendo feito toda a
sua vida política em Coimbra, Álvaro Amaro é visto em alguns meios locais como
uma pessoa estranha ao distrito. Marília não aceita a sugestão de Nogueira e
responde que se o partido é democrático, então que se vote. «Você perde, não
faz bem as contas», diz-lhe, enigmaticamente, o ministro. «Logo se vê»,
responde-lhe a deputada. E, em 1994, nas eleições internas do PSD da Guarda,
Álvaro Amaro arrebata a Marília a presidência, com quatro votos de diferença.
Mas isso não a afasta da Assembleia da República, onde mantém as funções de
deputada, nem tão pouco é suficiente para afastar João Raimundo.
Ao contrário, João Raimundo parece
poder ir ainda mais longe, como inevitável candidato (e óbvio vencedor) das
futuras eleições no IPG. Estas deviam realizar-se assim que estivessem
aprovados os estatutos da instituição, fazendo com que, depois do Instituto
Politécnico de Lisboa, ainda em 1992, o Instituto da Guarda fosse o segundo a
deixar a fase da instalação para entrar na fase da autonomia.
Vive-se, então, uma fase histórica
para o ensino superior politécnico, no seu conjunto, que, existindo no papel
desde 1979, só tivera maior visibilidade a partir de 1983 com as nomeações,
muitas delas polémicas atendendo à divisão partidária dos lugares, dos seus dirigentes
e dos seus primeiros professores, de acordo com a lógica do «bloco central».
O ensino politécnico tinha nascido,
primeiro com o ministro da Educação Veiga Simão, com o objectivo de formar
técnicos (e professores, nas Escolas Superiores de Educação) com o grau
académico de bacharel, obtível em três anos, numa ruptura — nada gradual — com
o ensino universitário. É a corporização da ideia de recriar um sistema de
formação de quadros intermédios, mais descentralizado do que as universidades
(que manteriam até 1997 o exclusivo dos cursos de licenciatura de cinco anos) e
mais próximo das realidades locais. O ministro da Educação do primeiro governo
de António Guterres, Eduardo Marçal Grilo, tem nessa altura o cargo de
director-geral do Ensino Superior e é o arauto do politécnico, que consolidará
depois em 1997.
Este ensino superior de novo tipo
(que, algo desastradamente, chegara a ter o nome de ensino superior de curta
duração) nasce nas principais cidades de todo o País, a partir de 1982: em
Beja, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Faro, Guarda, Leiria, Portalegre,
Porto, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo e Viseu, com escolas de formação de
professores, de tecnologia e gestão e agrárias. Desde o início — como é de
norma — que estas instituições são dirigidas por comissões instaladoras
nomeadas.
A partidarização das nomeações,
algumas delas desajustadas das necessidades reais do ensino politécnico, acaba
por não contribuir para a solidez do sistema, apesar da benevolência
interessada com que as comunidades do interior o aceitam. Estas vêem-no como
uma espécie de bem menor sem, no entanto, dispensarem o objectivo de terem uma
universidade, de uma forma ou outra.
Mas, apesar disso, o ensino
politécnico consegue crescer e vencer as várias debilidades. Os números de 1995
dão dele um retrato sugestivo: 40 mil alunos, 50 escolas superiores e 25
milhões de contos na fatia do Orçamento de Estado que cabe, nesse ano, ao
Ministério da Educação.
Sendo, embora, mal conhecidos fora
das suas próprias cidades, os institutos politécnicos tinham, nessa altura,
adquirido, tal como as universidades nas cidades onde elas se implantaram ao
longo deste século, uma dupla importância: tal como os reitores, eleitos desde
1979, os presidentes dos institutos politécnicos são os representantes de
estruturas que, além do privilégio social e político, dão a cada cidade um
lucro líquido anual de milhões de contos.
É fácil perceber a sua importância,
que tem também um cariz político: onde o poder central, mesmo sem critério,
nega a possibilidade de uma universidade, o instituto politécnico, com a
envergadura que tem, é uma obra que, para inaugurações e outras iniciativas,
não pode ser desperdiçado pelo partido no Poder, sob pena de deitar por terra a
hipótese de mostrar obra feita e de angariar mais votos em troca de um pólo de
ensino superior.
Em 1994, quando só ainda o
Instituto Politécnico de Lisboa tinha deixado o regime de instalação e elegera
o seu presidente, a Guarda é um bom exemplo: três mil alunos, um corpo docente
estabilizado e estatutos em vias de aprovação. E um impacto de seis milhões de
contos de receitas anuais para a própria cidade, no consumo de materiais de
construção, no consumo de bens (roupas, alimentação, bebidas e alojamento) por
parte de milhares de jovens, na sua maioria oriundos das classes média e média
alta, e nas expectativas de fixação dos seus diplomados, quer no ensino quer
nas áreas técnicas e de comércios e serviços.
Com prestígio e muito sólido
financeiramente, o IPG foi e é, ainda, um dos muitos exemplos de como o ensino
superior transforma uma cidade onde o tecido empresarial é, ou se torna,
frágil, a ele podendo ser acrescentados outros casos emblemáticos de Norte a
Sul: Vila Real (com uma universidade), Covilhã (universidade), Castelo Branco
(instituto politécnico), Viseu (instituto politécnico), Évora (universidade) e
Beja (instituto politécnico e pólo universitário do sector privado).
O IPG vivia, como instituição de
ensino superior público, dos dinheiros do Orçamento de Estado. O dinheiro ia de
Lisboa, do Ministério da Educação, e praticamente sem contrapartidas. De
propinas (nessa altura, como desde os anos 40, a 1200$00) já se falava, datando
de Maio de 1992 o primeiro decreto-lei de Cavaco Silva que estabelece uma
propina média de 55 contos que deveria aumentar progressivamente.
Se o Governo era a fonte de todo o
poder, se o Governo era do PSD, mal parecia que o PSD local não recolhesse os
louros desse investimento, que o próprio João Raimundo considerava tão
importante como o dinheiro gasto, nessa altura, no IP5. Mas o PSD da Guarda era
mantido à distância. Ia às sessões mais solenes mas censurava à «sua»
governadora civil, Marília Raimundo, o facto de aceitar uma situação que não
beneficiava os laranjas. Que, dados
os laços matrimoniais entre o presidente do IPG e a governadora civil, até
poderiam alimentar suspeitas de que o objectivo era mesmo prejudicá-los...
Nesta perspectiva, era fácil argumentar que João Raimundo era um entrave e
havia que removê-lo.
A primeira tentativa viveu da
hipótese de substituição de todos os presidentes, quando, em Outubro de 1993, o
então ministro da Educação, Couto dos Santos, fez aprovar um decreto-lei que
delimitava o fim do regime de instalação dos institutos politécnicos.
Seria possível (e útil) afastar os
presidentes em exercício para que fossem outros os responsáveis que iam dirigir
os processos de elaboração dos estatutos e de lançamento das eleições? Poderia
haver legislação para, já em 1994, «limpar» todos os presidentes dos institutos
politécnicos? As perguntas foram feitas, nos círculos mais íntimos do Governo,
e as respostas foram ponderadas. Mas o bom senso, a evolução do quadro político
e o parentesco partidário da maioria dos presidentes das comissões instaladoras
aconselhavam prudência.
Em Dezembro de 1993, na sequência
de uma manifestação de estudantes violentamente reprimida pela polícia, Couto
dos Santos (cuja origem era a política pura e dura e não a educação) é demitido
por Cavaco. A sua herança — que inclui o secretário de Estado do Ensino
Superior, Pedro Lynce de Faria, e os directores-gerais do maior ministério do
Estado português — passa para a sua sucessora, Manuela Ferreira Leite, íntima
de Cavaco e, antes, secretária de Estado do Orçamento. E finalmente, decide-se:
é impossível substituir todos os presidentes, mais a mais em pleno processo de
eleições.
Ou seja, mesmo contra a vontade do
seu próprio partido, João Raimundo fica condenado a permanecer na presidência
do IPG. E, extrovertido, nem esconde que fica para as eleições de modo a acabar
a sua obra. Colocando-‑se, assim, na mira directa dos seus rivais, que se
assustaram perante a hipótese de a sua bête
noire poder continuar em funções no IPG.
Por isso, no começo de 1994, começa
a desenhar-se a solução. Política, local e cirúrgica: há que afastar João
Raimundo do cargo e da corrida sem danos para o PSD e sem que a «opinião
pública» e a população se surpreendam.
A concretização desta estratégia,
finamente delineada, traduz-se, num primeiro tempo, nas pressões para que ele
saia, a nível de Governo (onde o então secretário de Estado Álvaro Amaro,
sucessor de Marília na presidência da Comissão Política Distrital do PSD, o
sugere a Pedro Lynce de Faria), começando, mesmo, a circular o nome de
eventuais substitutos.
No Ministério da Educação, Manuela
Ferreira Leite mantém-se discreta, aparentemente desinteressada, e Pedro Lynce
de Faria tenta mostrar que está reticente. Mas, já num segundo tempo, no inner circle do Ministério da Educação
opta-se por uma derradeira cartada: um convite para que João Raimundo aceite o
cargo de director-geral do Ensino Superior. O «sim» passaria pela sua saída da
Guarda. A proposta esbarra numa resposta obviamente negativa de João Raimundo.
Uma outra hipótese surge no terreno
do processo eleitoral, para o qual seria essencial encontrar um bom candidato.
Assim, o PSD pondera hipóteses para as eleições e, com elas, circulam convites
dirigidos a alguns notáveis convenientemente
universitários.
De entre os nomes que começam a
circular, há um de peso: Fernando Carvalho Rodrigues, o cientista que
celebrizaria o «satélite português», o PoSat, membro da lista do PSD nas
eleições para o Parlamento Europeu por convite dos social-democratas locais e
candidato desejado à presidência do IPG. Era uma alternativa para a
presidência, apesar de não pertencer aos seus quadros, graças à disposição dos
estatutos que permitiam a eleição para o cargo de personalidades externas de
reconhecido mérito e alargada experiência profissional.
Mas Carvalho Rodrigues, que nunca
negou esses rumores, não terá querido avançar e, à medida que o tempo vai
passando, João Raimundo perfila-se como vencedor inevitável das eleições.
Para os seus adversários, é a
catástrofe iminente... e havia que encontrar os meios de esconjurá-la.
Até porque, para eles, a
confirmação de João Raimundo na presidência do IPG, já legitimado pelo voto,
poderia dar, mesmo que indirectamente, um alento a Marília e fazer piorar as
dores de cabeça dos laranjas locais,
como em todo o PSD mais voltados para dentro e para as benesses do Poder do que
para as populações que os haviam eleito, e que já se amarguravam com a hipótese
de uma provável derrota nas eleições legislativas de 1995. Sem a Câmara, desde
sempre ganha pelo PS, o PSD arriscava-se a perder a posição de poder que, por
interposto militante, tinha na mais importante entidade do distrito: o IPG.
Essa situação transformaria a vitória de Álvaro Amaro na Comissão Política
Distrital numa verdadeira vitória de Pirro: boa para uso interno, inútil para o
exterior.
Quanto a Marília Raimundo, nessa altura
já só uma discreta deputada mas ainda expressão da verdadeira militância
social-democrata do PPD de Sá Carneiro, era vista como uma intolerável «força
de bloqueio» interno. Não correria Álvaro Amaro o risco de, se perdidas fossem
as eleições legislativas de 1995, perder também o lugar na hierarquia local (e,
logo, nacional) do partido? Se assim fosse, não regressaria Marília ao lugar
que quatro votos lhe haviam roubado? Numa altura em que o PSD via o poder a
esboroar-se, tudo era possível.
Podemos supor que a angústia dos laranjas só cessou no momento em que se
encontrou a única solução adequada: o equivalente a um golpe de Estado, com
cobertura legal e justificação pública, para retirar a João Raimundo todas as
possibilidades de intervir. De forma arrasadora: a sua desonra pública, uma
acusação que o fechasse a sete chaves numa prisão por um período
suficientemente longo para ser esquecido e, já agora, a destruição pública do
casal (Marília podia tornar-se uma pessoa incómoda) e, porque não?, da família.
A chave para abrir esta porta de
saída estava no processo movido contra João Raimundo por Bernardo Duarte e que
tivera uma sentença desfavorável para o presidente do instituto, proferida pelo
juiz Granja da Fonseca, considerado por muitos como próximo do PSD.
O famoso caso da «lista negra» da
Guarda nasce nesta altura. Não com João Raimundo mas contra ele.
CAPÍTULO 2
O SACERDOTE E O JUIZ
Para respeitarmos a cronologia,
temos que considerar que o «caso da “lista negra”» — ou, melhor, a oportunidade
para lhe dar origem — começou dez anos antes da prisão de João Raimundo, quando
este era, ainda, professor do ensino secundário na Escola Secundária da Sé, no
coração da Guarda.
No ano lectivo de 1983/84, João
Raimundo estava a fazer a profissionalização, num regime que antecedia a
entrada nos quadros do Ministério da Educação e a contratação definitiva. Era,
ao mesmo tempo, dirigente do Sindicato dos Professores da Zona Centro.
De acordo com a legislação vigente,
João Raimundo tinha direito a uma redução de tempos lectivos, devido à sua
qualidade de dirigente sindical. Solicitou-a e ela foi-lhe concedida, para esse
ano escolar, por um despacho da então secretária de Estado dos Ensinos Básico e
Secundário, Maria Helena Carvalho dos Santos.
A redução não foi bem aceite por
outro professor, Bernardo Duarte, ex-sacerdote católico, nessa altura com 55
anos.
Bernardo Duarte não se poupou a
críticas públicas, como se esse «privilégio» não fosse utilizado por dezenas de
dirigentes dos sindicatos de professores. Pretendendo dar o exemplo, e receando
que essa situação pudesse ser aproveitada para novo ataque, pessoal ou
político, João Raimundo já nem pediu a redução no ano lectivo seguinte
(1984/85), limitando-se a acumular a actividade docente com a actividade
sindical. Mas isso não apaziguou Bernardo Duarte.
A questão foi invocada, mais tarde,
para explicar a pretensa «animosidade» de João Raimundo contra Bernardo Duarte
e objecto de análise no âmbito de um de vários processos judiciais. Por isso,
convirá registar uma terceira opinião, independente, sobre o assunto, de acordo
com o registo escrito do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, que cita a
então presidente do conselho directivo da escola, Maria Manuela Cruz
Mascarenhas Monteiro Faria, ouvida já em 1986 a propósito do despacho que
permitiu a redução de horário e que iria dar origem à polémica:
«... Recorda que, na altura, o Sr.
Dr. Bernardo Duarte, na qualidade de elemento da secção de avaliação, por
também ser delegado à profissionalização, criticou essa redução e considerou-a
“uma situação de favor em relação aos outros formandos”. Em consequência desta
posição, recusou-se sempre o Sr. Dr. Bernardo Duarte a emitir qualquer parecer
em relação ao Sr. Dr. João Raimundo no tocante à sua avaliação. A depoente
desconhece se o Sr. Dr. Bernardo Duarte moveu diligências, a nível ministerial
ou outras, no sentido de ser revogado despacho [da secretária de Estado]. Sabe
também que no segundo ano o Sr. Dr. João Bento Raimundo não requereu a redução,
baseado na qualidade de dirigente do sindicato, ficando assim em igualdade de
circunstâncias com os restantes formandos.»
Ia a polémica em bom andamento
quando, em Julho de 1985, João Raimundo é nomeado presidente da comissão
instaladora do IPG por João de Deus Pinheiro, tomando posse em 8 de Agosto
desse mesmo ano. E, no âmbito da sua actividade, abre concurso para a
contratação de professores na recém-aberta Escola Superior de Educação (ESE)
para as aulas de formação inicial e para as actividades de orientação
pedagógica. O novo presidente deitara mãos à obra e tentava levar por diante o
esforço de erguer a instituição de ensino superior que a Guarda de há muito
reclamava.
Enquadrado pelo Decreto-Lei
381/D/85, de 28 de Novembro, o concurso para orientadores da ESE na área do
Português foi aberto por edital do presidente do IPG publicado no Diário da República, II série, de 9 de
Julho de 1986, estipulando os seguintes factores para consideração: posse de um
de entre os cursos de três escalões de habilitação própria, classificação profissional
de «Bom», prática docente após a profissionalização no grupo e disciplina a que
concorre, prática docente de orientação pedagógica na formação de professores
no grupo e disciplina em que é profissionalizado, aproveitamento na frequência
do mestrado na disciplina a que concorre, curriculum
vitae relevante, a melhor nota profissional e a habilitação académica em
caso de empate e, finalmente, entrevista.
A esse concurso, que tinha um júri
próprio formado por três professores do IPG, apresentaram-se 31 candidatos,
todos eles docentes do ensino preparatório e secundário, tendo sido excluídos
dois. Os resultados, baseados numa graduação dos candidatos admitidos, não
satisfizeram todos e três houve que apresentaram recurso da decisão do júri.
Relativamente a um, que pedia a
divulgação da grelha de seriação, decidiu o júri não ser «conveniente» torná-la
pública. Quanto a outro, cuja formação era de História, manteve-se a exclusão
por ser o concurso destinado a orientadores de Português. O terceiro era Bernardo
Duarte.
A deliberação do júri foi clara
sobre este candidato: tinha havido um lapso na sua inclusão num determinado
grupo, por ter concorrido a todos os grupos em aberto. E esse lapso podia
corrigir-se, embora isso, não lhe garantisse a entrada.
Havia, no entanto, um segundo ponto
onde a posição do júri não podia ser corrigida: o candidato não podia ser
incluído no então ensino preparatório (hoje, equivalente aos 2.º e 3.º ciclos
do ensino básico) por ser professor profissionalizado no ensino secundário.
Aliás, nem Bernardo Duarte poderia concorrer a professor efectivo do ensino
preparatório por não ter a profissionalização nesse grau de ensino. Esta
decisão foi tomada em 5 de Setembro de 1986, em reunião do júri.
Bernardo Duarte não a aceitou e, no
próprio dia 5, distribuiu um comunicado intitulado «No Instituto Politécnico da
Guarda — Um estranho concurso público documental», acusando o júri e o seu
presidente de ter favorecido (e convidado directamente) alguns professores.
No texto, de duas páginas em
formato A5, o signatário proclamava, num estilo muito próprio: «Concurso
público documental; Instituto Politécnico; Escola Superior de Educação;
Educação; Educação Superior; Piso de uma competência científica... humana e
humanizante; onde a competência e o rigor imperem... ou CORRUPTIO OPTIMI, é
caso para todos ajuizarem, ainda que analfabetos. O que não é admissível é que
tantos drs., em tão superiores lugares, dão cobertura a tanta CORRUPTIONI
OPTIMI, para que o produto final — a EDUCAÇÃO e os futuros professores não
saiam PESSIMI». [O texto é, rigorosamente, aquele que viu a luz do dia.] O
panfleto aludia a dois textos diferentes: uma entrevista de João Raimundo ao
jornal A Guarda, onde o presidente do
IPG afirmara que «o nosso piso terá que ser muito especificamente o piso de uma
competência científica, pedagógica, didáctica e, naturalmente, humana e
humanizante» (edição de 1 de Agosto desse mesmo ano) e uma outra entrevista, de
Manuel Prata, ao jornal Notícias da
Guarda, no mesmo dia, em que o então presidente da ESE defendera «uma
escola onde o saber, a competência e o rigor científico imperem».
Em 19 de Setembro, Bernardo Duarte
produz novo comunicado, intitulado desta vez «No IPG — O rei vai nu», onde
afirma: «O signatário tem o direito e o grave dever de gritar pela legalidade e
de alertar quem de direito que não deixe a nu as Instituições e a Educação. A
EDUCAÇÃO. Sob pena de um solene requiem,
nesta cidade da Guarda, acolitado por quem, envolto em fumo, vai nu de todo».
Cinco dias depois sai novo comunicado.
«No IPG — A deforma do sistema educativo já começou» é o título, com uma
explicação fornecida pelo autor: «Deforma: neologismo de formação analógica a
reforma mas de semântica antagónica». E a seguir: «Concentrou-se o Senhor
Presidente [do IPG]. Sentiu convulsões no cérebro e, na sua dinâmica e profícua
competência obrou — perdoe-se — a cagada, no manto diáfano da protecção,
salpicando o júri do concurso e conspurcando a instituição superior de Educação
que é o Instituto, a EDUCAÇÃO, a EDUCAÇÃO SUPERIOR, as Direcções Gerais, as
Secretarias de Estado, o Ministério da Educação, o PSD, que lhe meteu nas mãos
o Instituto, o Governo, a Democracia, as leis em vigor e a prática assente
nessas mesmas ideias» (sic).
E é aí que, garantindo ser objecto
de «ameaças telefónicas nocturnas, a coberto do anonimato», o autor do panfleto
vai procurar razões ao ano lectivo de 1983/84 para garantir haver animosidade
de João Raimundo contra ele, invocando a «muita protecção que acoberta J. R.» e
que protege «a desonestidade, a injustiça e a ilegalidade». Finalmente, sem
medir as palavras, dirigindo-se ao júri, garante que o lugar é seu e afirma:
«Ganhou-o em concurso público documental. A vossa hipotética entrega será um
roubo, em público, e as mãos que aceitarem o lugar serão mãos de receptador de
roubo.»
Inconformado com os ataques, João
Raimundo dirige, em 8 de Outubro de 1986, uma exposição ao delegado do
Procurador da República na comarca da Guarda. Nela, declara «difamatórias e
injuriosas» e ofensivas da honra e consideração algumas das expressões
utilizadas por Bernardo Duarte no seus comunicados, e indicando-o como autor
dos crimes de difamação e injúria, punidos nos termos do Código Penal, e
requerendo a instauração de procedimento criminal contra o ex-sacerdote.
Enquanto o processo era analisado e
marcada a audição do queixoso para 31 de Outubro, outras forças começam a
mover-se.
A 11 de Outubro, a Assembleia
Municipal da Guarda aprova moções do PS e do PRD onde já se generalizava tudo,
num ataque directo à gestão do IPG: «injustiças flagrantes nas admissões de
pessoal docente», «professores com longo currículo e habilitações académicas
superiores são preteridos em concurso público por alguém que fora convidado
pelo sr. Presidente [do IPG] a concorrer» e «mesmo em concursos públicos, o
presidente do IPG desrespeita as mais elementares normas de qualquer concurso
documental, admitindo os candidatos apenas segundo os seus gostos e
preferências pessoais». A moção aprovada exige, mesmo a demissão do presidente
do IPG.
A seguir, a 28 de Outubro, nove
professores que se afirmavam «lesados» pelos resultados do concurso (com
Bernardo Duarte em primeiro de uma lista, não alfabética, de nomes),
protagonizaram uma conferência de imprensa contra João Raimundo para «dar
conta, ao distrito da Guarda e ao País, da gravidade de uma actuação que — de
tão escandalosa — é desprestigiante das instituições educativas e — a manter-se
— será desprestigiante para o próprio regime». E as palavras são cada vez mais
fortes: «abuso descricionário do poder», «corrupção», «apadrinhamento»,
situações «aviltantes e anti-democráticas», «danos morais e materiais».
A ofensiva não pára. Em 28 de
Novembro, O Jornal do Fundão publica
um artigo de Bernardo Duarte, onde este critica as respostas que João Raimundo
dá às críticas dos professores, duas semanas antes, numa entrevista ao mesmo
jornal. O texto refere-se de tal modo à posição de João Raimundo (expressa no
título «Não houve compadrio no preenchimento de vagas no IPG»), com o violento
comentário «Este é o título de um extenso artigo que o sr. Dr. João Bento
Raimundo, presidente do IPG, ditou ex-cathedra
para o Jornal do Fundão», que o
próprio jornal se sente obrigado a esclarecer: «Não publicámos qualquer artigo
do presidente da CI do IPG mas uma entrevista com o Dr. João Raimundo, na
sequência, aliás, de uma conferência de imprensa promovida por um grupo de
profes-sores lesados nos concursos do IPG (entre os quais o Dr. Bernardo
Duarte).»
É também em Novembro que entra em
cena uma personalidade determinante para este caso. O mensário Douro e Neve — Jornal de Turismo —
Actualidades — Desportos de Inverno publica um extenso artigo assinado
apenas pelas iniciais F.M., pseudónimo de Granja da Fonseca, juiz local, com o
título «A máscara dos políticos já começou a cair...», onde, de novo, se invoca
a moção da Assembleia Municipal para se criticar João Raimundo («A Guarda
reconhece que este instituto, tal como os outros espalhados pelo País, são um
grande bem para o desenvolvimento regional, tanto no aspecto cultural como até
económico. Mas a Guarda não confunde que a Instituição seja um Homem.») e para
retomar a polémica dos concursos. No texto, o autor cita o caso de Bernardo
Duarte mas dedica sete parágrafos a José Alberto Saraiva, professor cunhado de
Granja da Fonseca que acompanha Bernardo Duarte na conferência de imprensa de
Outubro.
Aliás, esta não é a primeira vez
que Granja da Fonseca intervém a favor do cunhado.
Já no ano lectivo de 1983/84 o
fizera quando, objecto de um processo disciplinar, José Alberto Saraiva é
procurado, na Escola do Magistério Primário da Guarda, por um inspector ido de
Lisboa, do Ministério da Educação.
A visita descrevê-la-á, em juízo,
Granja da Fonseca do seguinte modo: «... Esse sr. inspector apareceu cá, num
dia em que o Dr. Saraiva estava em aulas, em Lisboa. A minha mulher era
professora na Escola do Magistério e pediu-lhe, segundo me veio a referir, que
permitisse ser o irmão avisado da sua presença na escola ou, então, que ouvisse
o marido, uma vez que ele poderia fornecer-lhe alguns elementos. No dia
seguinte, chegou o Dr. José Saraiva e, depois de ter conversado toda a manhã,
segundo me referiu, com esse sr. inspector, dirigiu-se de tarde à escola para
passar ao papel as suas declarações. Atendendo a que esteve toda a manhã a
falar, e porque tinha necessidade urgente de regressar a Lisboa, resolveu, após
o almoço, levar consigo um gravador. Chegado à escola, foi pedir ao inspector
se o autorizava a ditar oralmente para ser mais rápido. Anunciou-me que mais me
iria pedir se eu poderia estar com ele por causa dos vários diplomas que as
duas Secretarias de Estado lhe referiam nos ofícios e ele não entendia. Com
efeito, ele é licenciado em Arte e Design. Aguardei no corredor que o meu
cunhado lhe pusesse a questão. O sr. inspector, por gentileza, veio ao
corredor. O mesmo autorizou a minha presença.»
«O processo», finaliza o juiz, «foi
arquivado pelas razões constantes do mesmo documento.»
À imprensa de expansão nacional
também chegaram, embora de forma localizada, os protestos de Bernardo Duarte e
de José Alberto Saraiva, o primeiro no semanário O Diabo («Professores alertam — Processo pouco transparente no
concurso para docentes no Instituto Politécnico da Guarda», 16/12/86) e o
segundo no semanário Tal & Qual («É
um escândalo! — escreve um professor a Cavaco Silva», 31/12/86), aqui com
fotografia e carta acusatória de José Saraiva.
Na carta ao então
primeiro-ministro, o cunhado de Granja da Fonseca une um ponto de vista
doutrinário de Bernardo Duarte com as acusações que, misturando datas de
nomeação, o Sindicato dos Professores da Região Centro, já então fazia: «A
situação é escandalosa. Os procedimentos diabólicos do Dr. João Raimundo só
podem compreender-se pelo facto de ser marido da Secretária de Estado dos
Ensinos Básico e Secundário, permitindo-lhe essa situação ultrapassar os
limites do aceitável.»
O processo suscitado pela queixa de
João Raimundo tem início em 31 de Outubro de 1986, com a audição do queixoso, e
termina, com a última audição, em 23 de Janeiro de 1987. O juiz é Granja da
Fonseca e o inquérito preliminar dá origem a uma decisão de arquivamento do
processo, por parte do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda e a ordem de João
Raimundo ter que pagar 15 contos de imposto de justiça.
A decisão de Granja da Fonseca,
publicada em 21 de Abril de 1987, ocupa 32 páginas manuscritas, dando o
signatário toda a razão a Bernardo Duarte e perfilhando o ponto de vista deste
professor de que os textos são «panfletos, como reconheceram os licenciados em
Português e interrogados sobre esta matéria».
Quanto à queixa de difamação e
injúria, escreve Granja da Fonseca: «Uma ou outra expressão, porventura mais
mordaz, fez transparecer o objectivo do agente [Bernardo Duarte] que, não sendo
de ofender, antes pretendeu brincar, gracejar, caçoar a ridícula situação em
que o júri caíu...».
João Raimundo recorreu da decisão
para o Tribunal da Relação de Coimbra que, 2 de Dezembro desse ano, chumba a sentença de Granja da Fonseca,
determinando a aceitação da acusação e a marcação de julgamento e explicando
porquê: «os autos contêm indícios suficientes de que o arguido, com o seu
comportamento, preencheu os requisitos do tipo legal de crime de difamação, a
que se referem os artigos 164.º, 167.º e 168.º do Código Penal, pelo que se
impunha que o Meritíssimo Juiz recebesse, nessa medida, a acusação particular e
designasse dia para julgamento.»
Bernardo Duarte recupera, então, o
resultado das críticas públicas que fizera a João Raimundo em 1984, explicando
por aí a sua exclusão do concurso, numa queixa dirigida ao delegado do
Procurador da República junto do Tribunal Judicial da Guarda, que terminava do
seguinte modo:
«... [João Raimundo] acumulou
crimes com premeditação, com vontade determinada de causar prejuizo ao ora
participante, tanto a nível profissional, como social, como moral, como
económico e de retirar para si e para outros benefício ilegítimo, em conluio
com cada um dos elementos do júri até à consecução efectiva do intentado.»
E é assim que, três anos depois do
concurso (cujas considerações até tinham sido abandonadas na acusação do
Ministério Público da Guarda), João Raimundo e os professores Manuel Prata,
Joaquim Quadrado Gil e Abel Joaquim Pereira são acusados dos crimes de abuso de
poderes e de falsificação de documentos na forma continuada, em 10 de Novembro
de 1989.
Significativamente, o Ministério
Público retoma a tese que vingara na primeira instância (o tribunal presidido
pelo juiz Granja da Fonseca) e que Bernardo Duarte também havia brandido como leit motiv:
«[João Raimundo] nutria contra este
concorrente [Bernardo Duarte] forte antipatia por circunstâncias ocorridas nos
anos da sua própria profissionalização, entre 1983 e 1985 [ano em que João
Raimundo já não pedira a redução]. Sendo o queixoso Duarte delegado à
profissionalização de disciplina de Português, nessa qualidade deduziu perante
os órgãos escolares oposição no sentido de ao ora arguido, então estagiário,
ser cancelado, como foi, um privilégio que lhe havia sido concedido de redução
de cerca de seis ou sete tempos semanais. Movido por esse sentimento, concebeu
a ideia de afastar a todo o custo o denunciante [Bernardo Duarte] do concurso
ou eliminá-lo de modo a ser preterido...»
A acusação que o Ministério Público
faz sua é pródiga, note-se, em termos tão pouco precisos como «porventura»,
«cerca de seis ou sete tempos semanais», «em data não precisamente determinada,
ao que parece no mês de Agosto, o primeiro arguido resolve simular a existência
de um documento contendo a nomeação dos membros do júri e os critérios que
deveriam ter em conta na selecção dos candidatos», «assim, em dias não
precisos, ao que parece do mês de Setembro»...
Que a causa, de Bernardo Duarte e
do Ministério Público, não era muito sólida, mostra-o a forma como, em 28 de
Novembro desse mesmo ano, tendo passado três anos sobre o concurso, Bernardo
Duarte desfere novo ataque, constituindo-se assistente e declarando-se
«prejudicado».
Seguia, assim, à risca as
observações que o Ministério Público já fizera e acrescentava novo «prejuízo»:
«Ainda o ofendido ficou prejudicado sob o ponto de vista físico, já que a
conduta dos arguidos lhe alterou, irreversivelmente, o sistema nervoso, o que o
obrigou a tratamentos em centros clínicos». E retendo que há ainda outras
despesas a considerar, Bernardo Duarte pede, pelos «danos morais», uma
indemnização de cinco mil contos, exigindo que os quatro arguidos (João
Raimundo e os membros do júri) fossem condenados a «reconhecerem o direito do
ora assistente a ser ressarcido por todos os danos causados pelas suas condutas
delituosas».
O Tribunal Judicial da Comarca da
Guarda, pela voz do juiz Orlando Gonçalves, não se mostra, no entanto,
favorável a Bernardo Duarte. Num extenso despacho, de 25 páginas, datado de 15
de Maio de 1991, o Tribunal passa tudo em revista: o concurso, as polémicas, a
tese da vingança, as acusações e, mesmo, as apreciações algo vagas do
Ministério Público.
E conclui:
«Em face de todo o exposto,
consideramos não só não haver indícios suficientes de que os ditos documentos
são forjados, como ainda que os arguidos tenham abusado dos seus poderes, pois
a prova são depoimentos e declarações cheias de dúvidas, suposições,
alternativas nas próprias suposições face à falta de factos objectivos. Aliás,
a acusação, com o devido respeito, reflecte estas dúvidas, sendo empregues os
termos “parece”, “indeterminado”, “porventura”.
«Se o próprio assistente não tem,
relativamente aos factos que poderiam preencher tipos legais de crime, certezas
mas dúvidas, não podemos concluir que, sendo os arguidos levados a julgamento é
mais provável a condenação do que a absolvição dos mesmos.
«Quanto a nós, pensamos que se
verifica precisamente o contrário, isto é, com as provas apresentadas é muito
mais provável a absolvição dos arguidos dos crimes de abuso de poderes e falsificação
de documentos, do que a sua condenação.
«Assim, não encontramos elementos
para receber a, aliás, douta acusação do Ministério Público.
«Relativamente à acusação
particular do assistente Dr. Bernardo Duarte, a mesma traduz-se no
acompanhamento da acusação do Ministério Público e no aditamento de novos
factos que reforçam aquela e servem de suporte a nova incriminação.
«Tendo a acusação do Ministério
Público caído, tambem necessariamente cai a do assistente, que pressupõe o
recebimento daquela.(...)
«Sobre esses factos recordo, com a
devida vénia, o já doutamente referido no acórdão da Relação de Coimbra, citado
a propósito de iguais referências pelo então arguido Dr. Bernardo Duarte: “Há
regras, há pressupostos, há critérios técnicos que o Tribunal Comum não está em
condições de aplicar ou de apreciar. O certo é que, até ao momento, nenhuma das
instâncias com competência específica para o efeito deu razão ao ora
assistente”.» E é assim que o Tribunal recusa a acusação do Ministério Público
e a de Bernardo Duarte, ao mesmo tempo que sentencia que este «fica sem causa
de pedir, por não haver factos integradores de responsabilidade civil dos
requeridos, o pedido de indemnização civil».
Mas esta apreciação não convenceu o
Ministério Público que, em 5 de Junho, recorre para a Relação de Coimbra, da
qual, desta vez, recebe um sim. E, em
18 de Fevereiro de 1992, o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda aceita as
acusações do Ministério Público e de Bernardo Duarte (que apresenta como sua
testemunha José Alberto Saraiva).
O julgamento, presidido pelo juiz
Granja da Fonseca, demora dois anos, sendo a sentença proferida em 22 de
Fevereiro de 1994. Granja da Fonseca dificilmente poderia ser aceite sem
reservas por toda a gente, depois do modo como se identificara com Bernardo
Duarte. Esse factor e um episódio revelador dão origem a um incidente muito
especial.
Em 14 de Outubro de 1992, um dos
arguidos, Abel Pereira, não pôde comparecer na sessão do julgamento por estar
doente, tendo avisado o tribunal através do seu defensor. Achando necessário
confirmar a doença, o que era legítimo (e que se costuma fazer no domicílio,
atendendo até às circunstâncias potencialmente embaraçosas da doença desse
professor), Granja da Fonseca decidiu ordenar a detenção de Abel Pereira e a
sua condução ao tribunal para, aí sim, ser observado por médicos entretanto
convocados. O doente chegou ao tribunal, sob detenção, pelas 11 horas, só pôde
ser examinado pelos médicos (na biblioteca) cerca das 13 horas e, finalmente,
por volta das 14 e 30 pôde recolher a casa.
É assim que João Raimundo e alguns
cidadãos que com ele se identificavam pedem ao Conselho Superior de
Magistratura, de acordo com a Lei, para não ser Granja da Fonseca a presidir ao
julgamento.
O pedido foi recusado e é este juiz
que dita a sentença, em 22 de Fevereiro de 1994, num despacho de 32 páginas
onde se garante que os arguidos tinham actuado com «dolo directo». A condenação
resulta em penas de prisão (suspensas), a multas (ou prisão, em alternativa) e
numa indemnização de 750 mil escudos a Bernardo Duarte. E o juiz até parece
ironizar: «Atendendo à personalidade dos arguidos, às condições da sua vida, à
sua conduta anterior e posterior aos factos puníveis e às circunstâncias
destes, conclui-se que a simples censura dos factos e a ameaça das penas
bastarão para afastar os delinquentes da criminalidade e satisfazer as
necessidades de reprovação e de prevenção do crime».
João Raimundo e os restantes
arguidos recorrem da sentença para o Supremo Tribunal de Justiça, que se
pronunciará em Fevereiro de 1997. Mas, nos três anos que medearam entre as duas
decisões, muita coisa iria acontecer, incluindo a prisão de João Raimundo...
por terrorismo.
CAPÍTULO 3
A CONSPIRAÇÃO SAI À RUA
João Raimundo foi preso em Lisboa
numa terça-feira, dia 15 de Novembro de 1994, 19 dias depois de Luís Brígida, o
seu motorista ter sido preso.
As circunstâncias que rodearam a
prisão continuam, ainda hoje, rodeadas por dúvidas nunca esclarecidas.
Tenhamos presente que, quando
Brígida foi preso, João Raimundo, na qualidade de presidente do Instituto
Politécnico da Guarda, encontrava-se a caminho de Macau. Não em fuga, como o
testemunham todos os restantes presidentes dos institutos politécnicos, mas
para participar numa cimeira do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores
Politécnicos (CCISP).
E para Macau viaja, aliás,
acompanhado: no mesmo avião, segue também João Duarte Silva, presidente da
comissão instaladora do Instituto Politécnico de Setúbal. Por razões diferentes
(no caso de João Raimundo, uma deslocação ao congresso dos TSD na Figueira da
Foz, onde é cumprimentado por Cavaco Silva), chegarão os dois 24 horas mais
tarde do que o previsto. A ausência de ambos é notória numa fotografia tirada a
todos os participantes presentes logo no início da reunião. E esse facto
permitirá alimentar todas as dúvidas: João Raimundo não está, afinal, em
Macau... Uma rádio da Guarda, que vai ter um papel determinante em todo o
processo, asseverará, mais tarde, que o presidente do IPG estava em Hong Kong a
depositar dinheiro, que nem se saberia ser seria seu...
É aí, em Macau, que João Raimundo
ficará a saber, em contacto telefónico com Marília, que o motorista estava
preso. Ao telefone, ambos especulam sobre o que pode ter motivado a situação
mas concluem pela hipótese de um «assunto de saias». Sem nada a temer ou a
esconder, João Raimundo não se sente ameaçado. Nem em Macau nem em Londres,
onde faz escala, pensa, por um instante que seja, em não regressar.
Mas fá-lo. Com um acaso pelo meio,
que não deixará de ser registado por quem o vigiava: o carro em que regressava
a casa, vindo do aeroporto, pára, já noite, para ele poder jantar. A PJ, que o
seguia, perde-lhe o rasto. Ver-se-á o resultado, mais à frente.
No dia seguinte, regressado a casa,
mesmo sentindo-se objecto de suspeitas pela prisão do seu motorista, João
Raimundo continua a não se ausentar. Está tranquilo e tranquilo continuará. Não
desaparece da Guarda. Não se rodeia de advogados. Limita-se apenas, perante os
rumores que começavam a circular, a suspender as suas funções, delegando-as
noutro membro da comissão instaladora que o acompanhava desde o início, Martins
da Fonseca. E fica à espera de que tudo se esclareça.
Apesar de auto-suspenso, no
Ministério da Educação, em Lisboa, tratam-no como se estivesse ainda no
exercício pleno das suas funções. E é do gabinete do secretário de Estado do
Ensino Superior, Pedro Lynce de Faria, que sai uma convocatória para uma
reunião no Ministério. Na sexta-feira, dia 11 de Novembro. João Raimundo pede
ao secretário de Estado que a reunião não se faça nesse dia e ela é marcada
para a segunda-feira seguinte, dia 14.
Nessa noite, sexta-feira, o
delegado do Ministério Público da Guarda deixa-se fotografar com jornalistas,
numa confraternização festiva... e, no domingo, dia 13, João e Marília seguem
para Lisboa.
Segunda-feira de manhã, na reunião
com Pedro Lynce de Faria, João Raimundo trata de alguns assuntos pendentes e
troca impressões com o secretário de Estado sobre os rumores que rodeavam a
prisão do motorista. Este sugere-lhe não haver motivo para preocupações.
Depois, o secretário de Estado e o seu chefe de gabinete, Rui Trigoso, mais
tarde colocado na Casa Militar da Presidência da República com Jorge Sampaio,
acompanham-no, muito afavelmente, ao elevador, no 11.º andar. De consciência
tranquilizada, João Raimundo passeia na Avenida 5 de Outubro, a ver montras.
Não faltarão, depois, algumas
críticas dirigidas à equipa do Ministério da Educação por João Raimundo ter
sido recebido, dada a sua situação de auto-suspenso. Nem sobre a coincidência
entre a reunião de Lisboa e a detenção na mesma cidade. Caberia a deslocação a
Martins da Fonseca? Talvez mas o certo é que o convite para a reunião foi
pessoal e partiu da Secretaria de Estado.
É nesse dia, segunda-feira, que é
oficialmente emitido o mandado de detenção. Terá tido origem em Coimbra mas
assina-o Maria Amália Correia Rolão Preto, delegada do Procurador da República
na comarca da Covilhã, com data de 14 de Novembro de 1994: «Manda a qualquer
funcionário de justiça ou autoridade competente que detenha e conduza a este
tribunal no prazo de 48 horas o denunciado: João Bento Raimundo (...) a fim de
ser submetido a 1º interrogatório judicial, nos termos do disposto no art.º 245
al. a) do Código do Processo Penal e caso tal não seja possível deverá ser
presente ao Juízo da comarca competente da área da detenção». O mandado não
especifica porquês. É uma dúvida legítima, posta mais tarde pelos advogados de
João Raimundo, mas que não é suficiente para impedir a detenção.
Registe-se, de passagem, a
afirmação de um semanário especializado em «casos de polícia», entretanto
desaparecido, O Título, na sua edição
de dia 17 desse mês (três dias depois): «a prisão fora autorizada por um
mandado de captura emitido a semana passada pelo juiz da comarca da Covilhã que
preside à instrução do processo». A ser isto verdade, a decisão seria anterior
a 12 de Novembro, sábado... E podia ter sido executada a qualquer momento e em
qualquer sítio, incluindo a Guarda... embora fossem maiores as repercussões se
a prisão tivesse lugar em Lisboa. Onde João Raimundo estivera prestes a
deslocar-se na sexta-feira, dia 11, a convite do Ministério da Educação. Como
outras, esta dúvida nunca será esclarecida.
Há, ainda, outra ocorrência a
registar no dia 14, segunda-feira.
Numa informação de serviço da
Subinspecção da Guarda da Polícia Judiciária, o agente Carlos Barata escreve ao
subinspector Manuel Portugal: «Para os fins tidos por convenientes tenho a
honra de informar V. Exa que hoje, pelas 23H20, pessoa que declinou a sua
identidade telefonou para o Piquete desta Inspecção e disse o seguinte:
“Prenderam o motorista mas não vão prender o Raimundo. Ele já foi para Lisboa e
brevemente vai ausentar-se para o Brasil. Começou a ter cuidados quando
regressou de Macau ao ponto de na viagem que fez de Lisboa para a Guarda ter
telefonado a alguém do IPG para mandar uma viatura daquele instituto ao seu
encontro e ter mudado de viatura durante o percurso.” Não foi possível colher
outros elementos porque a pessoa que telefonou desligou de seguida.»
Perante este papel, há novas
dúvidas que se põem. Quem seria o denunciante? Seria a sua voz masculina ou
feminina? Não seria natural que o autor da nota fizesse referência ao sexo da
voz? Ou, se ele fosse indistinto, à impossibilidade de identificá-lo? A
informação não parece ter suscitado qualquer admiração mas, tão só, ter servido
para apressar a ordem de prisão. Ou para a justificar?
A única coisa que sabemos é que o
destinatário dessa nota, Manuel Portugal, vai ser um dos homens que, na
Judiciária da Guarda, se ocuparão, praticamente em exclusivo, de todo o
processo — com uma brevíssima excepção, numa pista que nunca foi
convenientemente explorada — e de transferir para o papel as declarações dos
homens que surgiriam na «lista negra».
E ficamos a saber também que,
fazendo parte do processo, essa informação de serviço justifica todas as
atitudes de qualquer funcionário de justiça ou autoridade competente. Mesmo a
decisão de o deter em Lisboa — a meio caminho entre a sua casa e o Ministério
da Educação — para que não recaísse a suspeita de que o convite para a reunião
seria uma forma de o prender, literalmente falando, em Lisboa. E dando tempo
suficiente, ao deterem-no só no dia seguinte ao final da manhã, a que a notícia
da sua detenção preceda em algumas horas a sua chegada à Guarda numa viagem em
que o detido está, na prática, incomunicável.
Todas as especulações são
possíveis.
É assim, sem suspeitarem do que
poderá acontecer, que, na terça-feira, dia 15, João e Marília se dirigem, ao fim
da manhã, a um restaurante nas imediações da casa que mantinham em Lisboa, ao
Rego.
Aí, João é abordado por dois
homens, que se identificam como agentes da Polícia Judiciária e que lhe
perguntam se estava armado. Que não, responde João Raimundo, abismado. Não
conhecia de armas, contactara com elas durante o serviço militar e nem era
caçador. Não lhe dão voz de prisão mas pedem-lhe que os acompanhe a instalações
da PJ que não eram as da Rua Gomes Freire e que, ainda hoje, João Raimundo não
consegue situar.
E João Raimundo — que «não ofereceu
resistência aos agentes» porque «“parecia que já estava à espera disto”,
segundo uma fonte policial» (ainda de acordo com O Título) — lá vai, estupefacto. Não suspeitava de que podia ser
alguma coisa contra si e isso é revelado pelo facto de, só no dia seguinte, a
família ter procurado um advogado para acompanhar a situação.
Aliás, nesse dia, ainda não se
percebe que a detenção era só o começo de um calvário.
À tarde, depois de comer umas
sanduíches e de ter bebido água, João Raimundo é informado de que tem que ir
para a Covilhã. Mas, quando se metem à estrada, informam-no de que o destino é
outro: a Guarda, afinal. Onde, bem como em todo o País, já se vai sabendo, pela
agência Lusa, da detenção em Lisboa, rapidamente justificada por uma alegada
«lista negra».
No caminho, no IP3 (na zona da
Aguieira), páram num restaurante para jantarem, por proposta dos agentes que o
acompanham. A voz de prisão só lhe é finalmente dada nas instalações da PJ da
Guarda por volta das 22 e 30, ou seja passadas já doze horas. Aí, fotografam-no
e tiram-lhe as impressões digitais. Esvaziam-lhe os bolsos e só lhe deixam a
roupa que tinha vestida. É só aí que João Raimundo acaba por tomar conhecimento
dos motivos que — segundo a Imprensa — o fizeram ficar durante todo o dia sob
custódia da PJ. A noite passa-a fechado numa cela do Estabelecimento Prisional
da Guarda.
A essa situação, só por si
inquietante, junta-se outra de alcance público: na tarde do mesmo dia em que é
preso, é dado imediatamente como certo que a ministra da Educação, Manuela
Ferreira Leite, o exonera do cargo. É uma decisão rápida, tão rápida que se
antecipa à acusação formal e que até parece, pela velocidade com que é
divulgada, já estar preparada.
Três dias depois da detenção, a 18,
escreve O Independente: «Raimundo foi
condenado [no «caso Bernardo Duarte»] por actos praticados no âmbito das suas
funções no Politécnico. O Ministério não o beliscou. Porém, após a prisão do
seu motorista, aceitou (oficialmente...) o pedido de suspensão. Que, afinal,
não passou do papel. E, agora, que chegou a vez de Raimundo, correu a tomar
posição. A exoneração foi anunciada na terça-feira. Na quarta, a ministra
negou-a. E, nesse mesmo dia, o seu gabinete confirmou-a. Muito hábil.» Nunca
Manuela Ferreira Leite se pronunciou publicamente sobre este caso.
No dia seguinte, quarta-feira, o já
demitido presidente do IPG comparece, às 11 horas, perante a juíza Helena Melo,
na Covilhã, rodeado de grande aparato policial... e de jornalistas, devidamente
informados do que estava a acontecer. A juíza adia a audiência para as 15 horas
e os agentes convidam-no a ir a um restaurante muito conceituado do Fundão, sem
que disso seja informado o seu advogado, e aceitam que o detido lhes pague o
almoço.
A juíza faz-lhe três perguntas. A
primeira é em quem votou, enquanto militante do PSD, nas eleições para a
Comissão Política Distrital — João Raimundo diz que votou em quem lhe apeteceu.
Se há algum «saco azul» no Instituto? — João Raimundo diz que não, que é
proibido. Depois, hão-de falar-lhe, ainda, de Luís Brígida: se é capaz de
bater, ou de mandar bater, noutra pessoa — que não, que o motorista não é
agressivo e que o único problema é «gostar de saias», responde, ainda.
O interrogatório dura 40 minutos.
No fim, a juiza Helena Melo confirma a prisão preventiva.
João Raimundo espera no exterior
até ser informado de que iria ficar detido na Covilhã. O agente Casaleiro entra
em cena para dizer a João Raimundo que tem que ir para Coimbra porque podia ser
atacado na prisão da Covilhã. Ficará em Coimbra até Janeiro, volta de novo à
Covilhã por 14 dias e, a 25 de Janeiro, já muito doente, consegue ser
transferido para o Hospital-Prisão de Caxias, em Lisboa, onde aguardará o
julgamento.
Oficialmente, a prisão é explicada
pela necessidade de prosseguir as averiguações por alegado envolvimento de João
Raimundo em actos de terrorismo, sugerindo-se mesmo que ele poderia fugir. O
que, note-se, não fizera quando lhe surgira oportunidade para o fazer em
Lourdes ou Macau.
Se a justificação oficial para a
prisão preventiva é lacónica (terrorismo), o certo é que as explicações para a
decisão do Tribunal da Covilhã já circulam há mais de 24 horas pelo País. Não
através do poder judicial ou de qualquer autoridade policial mas graças a uma notícia
da Lusa, convenientemente saída na tarde do próprio dia 15 e tecnicamente
catalogável como «fuga de informação». Ou seja, a condenação — com os
resultados que se vão conhecendo pelos dias seguintes — está, como é habitual,
na praça pública mesmo antes de o próprio a conhecer.
Vejam-se os títulos do dia 16:
«João Raimundo preso» (Diário de Notícias),
«Ex-presidente do Politécnico da Guarda detido pela PJ — João Raimundo “traído”
pelo motorista» (Diário As Beiras,
Coimbra), «João Raimundo fomentava terrorismo?» (Correio do Minho, Braga), «Dirigente social-democrata preso sob a
acusação de envolvimento em actos de terrorismo — A “vendetta” da Guarda» (Público).
A informação posta a correr pela
Lusa a partir da Guarda citava significativamente «fonte policial» e afirmava,
desde o início, o que se tornaria a primeiríssima explicação para o caso...
antecipando, mesmo, a acusação formal, que só saíria em Abril de 1995.
A prisão de João Raimundo «segue-se
à detenção, há três semanas, do motorista (...), Luís Brígida, acusado de
aliciar pessoas para actos de violência sobre algumas personalidades da Guarda,
nomeadamente um juiz», segundo noticiava o Diário
de Notícias, a partir da primeira informação da Lusa. E pormenorizava:
«O detido é suspeito de estar
implicado na elaboração de uma lista de presumíveis alvos de um plano de
vingança, visando “assustar e até matar” várias pessoas.
«À cabeça da lista encontrava-se o
juiz Granja da Fonseca, que julgou um processo movido contra João Raimundo e
outros professores do Instituto Politécnico da Guarda (IPG), condenando o réu a
dois anos e meio de prisão, sentença que levou a defesa a recorrer para o
Supremo Tribunal de Justiça.
«Na origem do processo, cujos
arguidos foram pronunciados pelos crimes de abuso de poder e falsificação de
documentos, esteve uma queixa apresentada por Bernardo Duarte, que se
candidatara em 1986 a docente da Escola Superior de Educação, integrada no IPG.
«A “lista negra” incluía ainda o
advogado de acusação particular naquele processo, Álvaro Guerreiro, e três
dirigentes locais do PSD: o director do Centro de Emprego, Soares Gomes, o
director do Centro Regional de Segurança Social, Jacinto Dias, e o presidente
do Instituto de Juventude, João Gonçalves. A questão foi despoletada por Ângelo
do Nascimento — um operacional da rede bombista no pós-25 de Abril —, que teve
conhecimento do alegado plano quando foi alegadamente contactado pelo motorista
de João Raimundo para espancar Jacinto Dias, presidente da concelhia
social-democrata da Guarda e vice-presidente da distrital.
«Ângelo do Nascimento, também
conhecido por “Ângelo de Trancoso”, terá revelado a Álvaro Guerreiro o
“trabalho” pedido, para cuja execução terá recebido a quantia de dois mil
contos. Acusado de terrorismo por alegado envolvimento no plano de João
Raimundo, o seu motorista, Luís Brígida, foi detido a 27 de Outubro.»
Apesar dos tempos cautelosos dos
verbos e da proliferação de várias formas da palavra «alegado», a suspeita —
para não falar em certeza... — estava definitivamente lançada na opinião
pública. Em alguns casos, sem preocupações com os mais elementares princípios:
«Mas desde a queixa de Bernardo Duarte, o caso do Politécnico nunca mais parou.
O processo chega ao tribunal, é julgado, João Raimundo é condenado e aposta
numa vingança, descoberta depois do envolvimento de uma figura sinistra.» A
prosa é do Diário As Beiras (16/11/94),
a partir da qual se supõe que nem toda a gente conhece o princípio de que
ninguém pode ser considerado culpado sem ser condenado.
Na cobertura noticiosa do que
aconteceu, o Público tenta ir ainda
mais longe no próprio dia e envia uma jornalista, Alexandra Campos, à Guarda
para fazer um enquadramento mais completo da matéria.
É aí, num texto, intitulado «A
“vendetta” da Guarda», que a «lista negra» adquire mais nomes (como se
estivesse ainda a ser construída...), além dos nomes fornecidos pela «fonte
policial» à Lusa: há mais dois jornalistas que, no entanto, não são
identificados.
A tese é a mesma que já viera a
público: o desagrado de João Raimundo para com a sentença do «caso Bernardo
Duarte». Mas com reticências de quem consegue parar para pensar... embora por
pouco tempo: «... Não parece um motivo suficientemente grave para desencadear
um processo de vingança desta dimensão». E, mais à frente, «... Se a sentença
aplicada por Granja da Fonseca a João Raimundo não seria, por si só, razão
suficiente para a alegada vingança, já os acontecimentos políticos que
perturbaram a Guarda em Fevereiro passado poderão ajudar a compreender melhor
os motivos». E a tese alarga-se às eleições em que Álvaro Amaro vencera Marília
Raimundo: somando esta situação e a sentença, escrevia a repórter, numa
explicação que se adaptava que nem uma luva à conspiração sem, no entanto,
tirar todas as consequências do que escrevia: «De uma assentada, a família
Raimundo caía em prestígio e em importância política».
As notícias, no entanto, não
salientam o que também deveria parecer óbvio: o crime de terrorismo era, além
do crime de tráfico de droga, o único que permitia a prisão preventiva, de
acordo com o Código Penal em vigor, dado o facto de para elas serem previstas
penas de prisão superiores a 8 anos.
Na quinta-feira, 17, João Raimundo
é transferido para Coimbra, para uma cela sem luz vulgarmente utilizada para
castigar os presos mais rebeldes. E é também nesse dia que outro jornal de
expansão nacional vai, de novo, recuperar a ideia da «lista negra» como
vingança pela sentença de Granja da Fonseca (que era de prisão com pena
suspensa...) e pela derrota de Marília: «A derrota em duas frentes foi um rude
golpe, pela perda de peso político que significou» (Diário de Notícias, 17/11/94)
Entretanto, um advogado interpõe
recurso, invocando a lei que permite que um preso preventivo seja transferido
para mais perto da família. E João Raimundo consegue voltar para a Covilhã.
Fica aí 28 dias, isolado de um mundo que se lhe torna, de repente, hostil.
A divulgação das razões da PJ para
que a prisão se mantenha é acompanhada não apenas pelas declarações e reacções
públicas de políticos e partidos como, também, pela proliferação de
comentários, generalizadamente desfavoráveis e concordantes com a tese da
«lista negra».
Álvaro Amaro é, compreensivelmente,
um dos primeiros notáveis a
pronunciar-se. «É uma coisa pessoal e não do partido (...) Os partidos não são
feitos de santos». E, sobre a rápida exoneração de João Raimundo: «É um acto
que determina, de maneira clara, que o PSD entende que ninguém está acima da
lei (...) e age em cima da hora e do acontecimento pelo bem público».
E dizia mais, o então secretário de
Estado da Agricultura: «O PSD da Guarda é defensor intransigente de que em
Portugal ninguém está acima da lei. As autoridades fazem todas as investigações
independentemente dos poderes políticos. Ninguém pode julgar ninguém enquanto
corre o processo de investigação. O PSD da Guarda trabalha com toda a
serenidade, com vista aos objectivos que temos pela frente, que é conquistar a
maioria absoluta em 95. O caso nada tem a ver com o PSD da Guarda. Porque é que
se amanhã um de nós estiver a ser investigado por uma qualquer asneira que
faça, há-de ser por ser do PSD ou de outro partido ou corporação qualquer?
Percebo que associem este caso ao PSD mas não tem nada a ver com o partido.»
Esta linha de defesa não era,
decididamente, a melhor e soava mal. Não faltou quem ripostasse ao novo n.º 1
do PSD local, sobretudo no que tocava ao «ninguém está acima da lei»: «A
afirmação, no momento em que foi feita, com o facto consumado (João Raimundo já
estava detido) perde efeito. Soa a “elogio fúnebre”. E cabe perguntar o porquê
de tão tardia tomada de posição quando eram públicas e notórias
(particularmente na Guarda), desde há bastante tempo, as “tropelias” de
Raimundo, “tropelias” essas, aliás, já condenadas em dois tribunais; (...)
talvez fosse preferível que, em lugares oficiais, “não houvesse ninguém acima
da moral”...» (João Fragoso Mendes, Diário
de Notícias, 17/11/94).
Também na Guarda, se pronuncia o
então presidente da Câmara, o socialista Abílio Curto.
Adversário e antigo colega de
escola de João Raimundo, Abílio Curto comenta: «Não estou a vê-lo a conduzir um
plano desta dimensão. Faltam peças ao puzzle,
a história continua muito mal contada». E, relativamente ao PSD, comenta:
«Álvaro Amaro não pode dissociar este caso, grave e sério, de uma determinada
conjuntura político-partidária do PSD. Foi preciso apear e abater a Dra.
Marília Raimundo da presidência da Comissão Política Distrital do PSD para que
estas coisas acontecessem.» Figura grada do PS local, Abílio Curto podia ter
aproveitado a queda dos seus adversários políticos para se regozijar. Mas as
suas declarações apenas denotam uma imensa estranheza e muitas suspeitas sobre
o que estava, de facto, a acontecer.
Quanto ao PCP, mantêm-se actuais as
observações feitas, antes da prisão, pela sua organização na Guarda: o eventual
ataque a Granja da Fonseca era, afinal, «um ataque directo à integridade, à
independência e coragem dos juízes portugueses que não cedem às pressões do
poder instituído».
Depois, no rescaldo das primeiras
impressões, a 17, o jornal Terras da
Beira ouve três dos notáveis implicados
no caso, apresentados como adiante se cita.
O primeiro é Soares Gomes
(identificado já como «alegada vítima»): «Não tenho comentários a fazer. Só
espero que se faça justiça, justiça, justiça».
O segundo é Bernardo Duarte
(«professor, queixoso no processo que levou à condenação de JR»): «Ao tomar
conhecimento do facto pela rádio, só posso dizer que as pessoas, quando tocadas
pelo desfavor, inspiram sentimentos de humanidade. Porém, os actos dos homens, se
desviados do caminho recto, têm de ser sujeitos a correcção para que se possa
viver em sociedade». O terceiro é Álvaro Guerreiro («alegada vítima, advogado
de Bernardo Duarte no processo contra JR»): «Não presto declarações. No futuro,
tudo depende do evoluir da situação. Vou ficar a aguardar os acontecimentos,
pois o assunto está a seguir as vias próprias. Para já, fico tranquilo, pois o
processo decorre naturalmente».
Se todos afinam pelo mesmo
diapasão, incluindo Bernardo Duarte, registe-se, aqui, a ausência de Jacinto
Dias, que teve lugar destacadíssimo nas estranhas conversas que Brígida
mantivera com Ângelo de Trancoso.
Com a aproximação do fim-de-semana,
nos jornais, o que era «alegado» tornou-se, com poucas excepções, certeza
absoluta.
Veja-se o caso do lisboeta Tal&Qual, com duas peças dedicadas
ao assunto. Na coluna regularmente assinada com o pseudónimo «Pitonisa» por um
dos seus jornalistas, com uma fotografia e uma referência expressa a João
Raimundo, escrevia-se: «...o Joãozinho fez das suas — compadrios, abusos de
poder, falsificações, como o tribunal demonstrou (...) E veio agora a saber-se
que se tramava na Guarda um plano terrorista de vingança nas pessoas do juiz
que o condenara, de um advogado que o acusara, de três dirigentes do PSD guardense
e dois jornalistas. Mas, como ainda não chegámos à Sicília, detido começou por
ser o seu motorista. E agora, sempre à conta da conjura, foi a vez do rico.»
No interior, na mesma edição, sob o
título «Um espectáculo repugnante», o jornalista e comentador Carneiro Jacinto,
ex-assessor de Mário Soares e actualmente na direcção do ICEP — Investimentos,
Comércio e Turismo de Portugal, escrevia: «O caso João Raimundo é lamentável a
vários títulos. Pela imagem que o PSD/Guarda tem dado, pelo comportamento da
direcção nacional e até pela actuação da própria polícia (...) João Raimundo,
tudo indica, está a funcionar como um simples peão no meio de várias lutas e
intrigas de poder. O seu partido, curiosamente, tem actuado na matéria dando-o
praticamente como culpado. Nada e ninguém o tem poupado. O espectáculo tem sido
repugnante».
Designando Marília Raimundo como
«cacique» e dirigindo outras críticas, políticas, a João Raimundo, Carneiro
Jacinto escreve, a seguir: «O processo policial tem contornos obscuros, sobretudo
levando em linha de conta alguns dos envolvidos, como o tristemente célebre
Ângelo de Trancoso. Não se percebe, a avaliar pelos dados disponíveis, por que
se pasaram tantos dias entre a chegada de João Raimundo a Portugal, vindo de
Macau, e a sua detenção. Não se percebe por que foi detido em Lisboa, à porta
de um restaurante, quando circulava livremente na Guarda. Não se percebe
completamente o papel do Ministério da Educação em tudo isto. Se João Raimundo
estava suspenso desde a sua chegada de Macau, por que razão se apressou Manuela
Ferreira Leite a exonerá-lo, antes de conhecer as decisões da Justiça? O
Ministério, neste caso, foi mais papista que o Papa e é capaz de ter feito
justiça por mãos próprias.»
E termina, com alguma falta de
pontaria: «No conjunto de todo este enredo, não se entende também o papel do
próprio PSD e a passividade com que tem acompanhado toda a trama. Querendo dar
a ideia de que este caso deve ser tratado de forma exemplar, arrisca-se a que
no espírito de muita gente comece a ficar a interrogação sobre quantos Joões
Raimundos existirão por esse país fora.»
No Público, a 19, o jornalista Raul Vaz atropela a cronologia e
mistura as metodologias com as personagens. Assim: «A história envolve o seu
motorista particular, que terá quebrado o sigilo profissional ao denunciar a
operação, para preservar uma das potenciais vítimas. Luís Brígida, o motorista,
foi detido há três semanas; João Raimundo teve a mesma sorte esta semana, pouco
depois de ter sido exonerado pela ministra da Educação». Depois, levanta
algumas dúvidas, como setas dirigidas ao PSD: «o PSD conhecia, ou tinha a
obrigação de conhecer, o comportamento do seu herói. Ele era o perfil a seguir
na Guarda, foi ele quem, há um mês, no pleno uso das suas funções, recebeu Cavaco
Silva no último Congresso dos TSD. Hoje, serve apenas para o PSD mostrar que
“ninguém está acima da lei”. Agora, serve de cordeiro para o despudor da
ambição.»
No Primeiro de Janeiro, no domingo, é que não há mesmo dúvidas
nenhumas: «João Raimundo (...) protagonizou o escândalo da semana, ao
descobrir-se que encabeçava uma pesada rede de tráfico de influências, o que o
levou a, presumivelmente, acabar a dirigir uma operação de âmbito terrorista
contra interesses e pessoas (...) João Raimundo é o exemplo do indivíduo que
não consegue exercer o poder de uma forma democrática mas sim para seu uso e
benefício pessoal.»
O Expresso, nesse fim-de-semana, é o único jornal a acolher, além da
tese da «lista negra», outras hipóteses, apesar de trocar um apelido de Brígida
(Rogado) por outro (Rosado):
«... Meios afectos à defesa de
Raimundo consideram que não está suficientemente esclarecido o motivo que levou
o ex-MDLP a denunciar o plano e defendem que ele poderá estar a agir por
motivos menos nobres, eventualmente subordinados a uma estratégia que visaria a
eliminação política do casal Raimundo.
«Outra das teses apresentadas pela
defesa é a de que tal plano seria mais o resultado da imaginação de Rosado e da
vontade de agradar ao seu patrão, dado ser conhecedor das rivalidades entre
estes e as potenciais vítimas. Segundo esta versão, as alegadas indicações de
João Raimundo não passariam de meros “desabafos” que o mesmo teria tido diante
do seu motorista, o qual, movido por um desejo de agradar, teria então tomado a
iniciativa de levar à prática o que supunha ser a sua vontade. Segundo Rosado
revelou às autoridades, também teria ouvido a deputada Marília Raimundo dizer
que havia quem merecesse “uma boa sova”, embora adiantando logo que era “contra
isso”. A deputada e ex-governadora civil da Guarda ter-se-ia referido, naqueles
termos, a Jacinto Dias, seu adjunto no Governo Civil.»
Os autores do texto, António
Marinho e Rui Pereira, observam, depois, que «a tese do excesso de zelo não
parece, porém, sustentável, dadas as elevadas quantias em dinheiro que o mesmo
movimentou, e cuja origem não soube justificar». A explicação para a
proveniência do dinheiro (o pai de Luís Brígida) só surgiria depois, bem como
as alusões ao conflito, em torno de uma mulher, que opunha Brígida e Jacinto
Dias.
Mesmo assim, o jornal dá voz a uma
recém-chegada «fonte judicial», cuja intervenção vai, novamente, dar força à
tese da acusação: «A Justiça deverá “cuidar exemplarmente” deste assunto.
“Trata-se de evitar a sicilianização da vida portuguesa”, disse, antes de
classificar os envolvidos como sendo membros de uma associação criminosa “com
elevada organização e perigosidade”.» Quem diz coisas tão sérias? Nunca o
saberemos. O ano-nimato das «fontes» permite que uma afirmação tão grave fique
órfã de pai e mãe.
Nove dias depois da prisão de João
Raimundo, a 24 de Novembro, o caso merece as atenções pormenorizadas da revista
Visão pela pena de Lurdes Feio em
cinco páginas de reportagem sob o título «Crónica de uma vendeta anunciada»,
numa descida ao grau zero da «investigação» jornalística.
Sem acrescentar muito de relevante
ao que seria a investigação em curso e sem que o estilo justifique a invocação
de uma novela do escritor Gabriel Garcia Marquez no título, o texto está pejado
de considerações que, pouco depois, hão-de motivar um pedido de desculpas à
família assim que se perfila no horizonte um processo por difamação.
E torna-se, até, pela relevância da
publicação, um dos melhores exemplos de como a Comunicação Social assumiu — em
simultâneo — o papel de advogado de acusação (nunca de defesa...), de juiz e de
carrasco que leva a família toda ao cadafalso.
Por exemplo: «Que se há-de dizer à
filha de um homem (João Raimundo) que, ainda há pouco, era um cacique
todo-poderoso e que, de um momento para o outro, passou a andar pelas boas do
mundo como contratante de jagunços para promover vendetas pessoais à boa
maneira siciliana?» E: «Desta vez, a vendeta pretendia atingir os culpados de
uma suposta traição à mulher.»
E sobre o ambiente na cidade: «Nos últimos
meses, a cidade beirã tem vivido em estado de choque, mergulhada num clima de
ódio e ameaças. Algumas famílias não dormem desde Julho uma noite descansada.
Telefonemas anónimos de madrugada, ameaças de agressões físicas e até de raptos
de crianças, automóveis espatifados — há de tudo um pouco. Bernardo Duarte, por
exemplo, desde há muito que deixou de ouvir rádio no carro: arrancaram-lhe a
antena, além de lhe terem retalhado a chapa com um canivete.»
Um dos jornalistas que, numa
primeira fase, aparece associado à «lista negra» é também citado: «Gabriel
Correia, um dos jornalistas ameaçados, confirma que desde há meses vem
recebendo telefonemas anónimos. Está de baixa, em casa, e dificilmente poderá
regressar à Rádio Efe onde trabalhou nos últimos anos. Tem sido perseguido pela
direcção da estação, que por sua vez está ligado ao jornal Terras da Beira. Numa e noutro, o repórter foi atacado. Quando lhe
perguntamos o que tenciona fazer, encolhe os ombros e diz: “Não sei, não tenho
nenhuma proposta de trabalho. Se a receber, estudarei o assunto.”»
Pouco tempo depois, Gabriel Correia
entrará em cena como dirigente da Rádio Altitude e, aí, torna-se um verdadeiro
acusador público contra o casal Raimundo... antes de ser objecto de numerosos
processos por difamação que lhe são movidos por Marília. A Rádio Altitude era,
ao tempo, propriedade, por herança histórica, do Hospital Distrital da Guarda,
dependendo, administrativa e politicamente do Governo por interposto Ministério
da Saúde. A nomeação deste jornalista foi feita, aliás, pelo então director do
Hospital, Valério do Couto, ex-vice-presidente da Comissão Política Distrital
do PSD da Guarda quando Marília era a líder do PSD local. E que apoiou, depois,
Álvaro Amaro.
E a Visão continua, sem deixar de fazer referências à vida pessoal de
João e Marília Raimundo: «Mas há outras estranhas coincidências neste caso. Por
exemplo, o que terá levado o secretário de Estado do Ensino Superior, Pedro
Lynce, a convocar João Raimundo para uma reunião de trabalho em Lisboa, precisamente
na terça-feira em que este seria preso? “Obrigaram-no a vir até à capital para
evitar prendê-lo na terra onde todos os conhecem. Seria um vexame ainda maior”,
dizem algumas fontes.»
Qualificando João Raimundo como «um
vulgar bandoleiro que o partido do poder agora pretende sacudir», a autora do
texto afirma, trocando, sem problemas, as datas todas: «Mas o favor que mais
escândalo provocou foi quando Marília Raimundo, então secretária de Estado no
Ministério da Educação, promoveu o marido a presidente da Comissão Instaladora
do Instituto Politécnico da Guarda, através de um decreto que lhe atribui as
qualificações académicas que ele, por direito, não possuía...»
Bem sentenciara o Diário de Notícias, a 20 de Novembro:
«João Raimundo é a primeira vítima séria do poder político dos jornalistas».
Em Dezembro, a 13, os advogados de
João Raimundo, Castanheira das Neves e Nuno Godinho de Matos interpelam o
Tribunal da Covilhã, pedindo o fim do regime de prisão preventiva do arguido.
É um texto de 20 páginas onde se
invocam não apenas circunstâncias históricas (a separação entre o poder
judicial e o poder policial, aqui muito convergentes...) mas as fragilidades da
teia de suspeitas que entretanto se formara para rejeitar a ideia de que seria
necessário manter detido um indivíduo que, no máximo, poderia ser acusado da
eventual tentativa de prática do crime de ofensas corporais e «nunca» do crime
de terrorismo.
Nas razões circunstanciais que
evocam, Castanheira das Neves e Nuno Godinho de Matos observam que «como crime
(repete-se, se existisse crime, porque não há) poderia estar em causa quanto a
um arguido diverso do requerente (porque quanto ao requerente é óbvio que não
há crime), uma tentativa de ofensas corporais e mais nada» e recordam que «esta
é realidade confirmada pela leitura do auto de declarações do arguido».
E acrescentam: «... Escreveu-se que
o arguido ficava preso porque se iriam ouvir outras pessoas. O que, salvo o
devido respeito, constitui, no mínimo, um grande equívoco, até porque é ilegal violando
expressamente a lei, o artigo 202.º do Código Penal».
Os advogados anotam que «”praticar
quaisquer crimes contra a vida, a integridade física ou a liberdade das
pessoas” não tem nada a ver com “dar bofetadas ou uns murros” num cidadão. É
óbvio que ninguém tem o direito de dar bofetadas, ou mesmo simples empurrões
nas outras pessoas, mas confundir “bofetadas” com terrorismo é um exagero que
não pode ser cometido, nem mesmo em sede de processo penal».
«Como é evidente e resulta de toda
a letra do preceito», acrescentam, «o tipo legal que prevê o crime de
terrorismo é destinado à repressão de actos violentos organizados por entidades
políticas, ou simplesmente politizadas, que têm como prática constante a
violência sobre os cidadãos em geral, ou sobre grupos de cidadãos em
particular, quer por razões rácicas, quer étnicas, quer de credo político ou
religioso. Este tipo legal jamais se destina aos mesquinhos ajustes de contas
de dois ou mais cidadãos, exprimidos em bofetadas ou em murros. O crime de terrorismo
exige uma componente de organização e violência, totalmente incompatível com
matéria dos actos. Se assim não fosse, deixaria de existir o crime de ofensas
corporais. Só que, neste caso, como não chegou a ser cometido crime algum, não
tínhamos moldura legal que permitisse o recurso à prisão preventiva nem recurso
ao “elixir” da “associação de criminosos”, que se pensava já ter caído em
desuso.»
Castanheira das Neves e Nuno
Godinho de Matos recordam ainda que «não existe o mínimo receio de fuga», tendo
João Raimundo regressado de Macau «depois de os jornais, no âmbito das normais
fugas de informação — de que ninguém é responsável — mas que sucedem
constantemente — já o tratarem por terrorista, há mais de uma semana».
Interrogam-se sobre «como pode o
arguido ir perturbar a polícia, ou o Ministério Público, com todos os seus
meios de investigação e de persuação» e insistem em que João Raimundo «não pode
ir destruir provas, porque os factos, que se pretende que tenham existido, já
existiram e, para lá das gravações policiais, nada mais poderá existir, pois
tudo se reporta ao passado, e a um eventual “crime sob a forma tentada”, sem
actos de consumação, pelo que não existem indícios materiais a esconder ou
destruir, para lá dos factos existentes no processo.»
E finalizam: «Continuar a
actividade criminosa é impossível porque não se pode continuar a fazer o que
nunca se fez. E, além disso, porque mesmo que o arguido algum dia tivesse
desejado “dar umas bofetadas” noutro cidadão da República (o que nunca sucedeu),
como é óbvio, com este processo a recorrer, jamais o faria, como decorre de
todas as regras de experiência comummente aceites.»
Mas a decisão é negativa e João
Raimundo é mantido preso.
Em 13 de Dezembro, as gravações das
conversas entre Luís Brígida e Ângelo de Trancoso estavam passadas a escrito e
todos os homens constantes da «lista negra» tinham sido ouvidos pela Polícia
Judiciária, com as suas declarações a formarem um conjunto harmónico. A tese da
«lista negra» e da vendetta banalizara-se
em tudo quanto é Comunicação Social. E o próximo alvo a abater é Marília
Raimundo que, afinal, consta da verdadeira lista negra — aquela que os
conspiradores conceberam.
Parte II
A
conspiração
CAPÍTULO 4
A ESCOLHA DAS ARMAS: BRÍGIDA E O TERRORISTA
João Raimundo não foi preso por
acaso ou porque tivesse feito — ou quisesse fazer — algo que obrigasse ao seu
encarceramento. Foi preso porque o presumido móbil do alegado crime a isso
obrigava e quem preparou tudo sabia-o: à luz da legislação então vigente, o
tráfico de droga era, depois do terrorismo, o único crime que convidava à
prisão preventiva. E afastar João Raimundo, e depois Marília, à cautela, era o
objectivo dos autores da tese da «lista negra». Neste duelo entre o acaso e a
necessidade, só faltava escolher as armas que iriam tornar credível a acusação.
E a escolha recaíu no homem (Luís
Brígida) que tinha motivos para querer tirar desforço de um dos futuros membros
da «lista negra» e no outro que entrava em cena como guest star para o efeito: o destino e a argúcia elegeram um
motorista e um cadastrado como armas escolhidas pelos conspiradores que estavam
a tecer a teia que enredaria João Raimundo.
O motorista era Luís Manuel Brígida
Rogado, de 34 anos. O cadastrado foi Ângelo do Nascimento, também conhecido por
Ângelo de Trancoso, ligado à extrema-‑direita em 1974 e em 1975, com cadastro
prolongado e projectado, em Novembro de 2000, à mediática condição de «agente
infiltrado» ao serviço da PJ. O primeiro foi à procura de alguém que pudesse
atacar um seu rival e encontrou-o na figura de Ângelo do Nascimento.
O relacionamento entre o motorista
e o terrorista constitui um dos pontos centrais do caso da «lista negra».
Essencialmente porque Ângelo do Nascimento, em articulação com a PJ, se mune de
um gravador para registar as conversas que vai manter com Luís Brígida. Sem
qualquer tipo de autorização judicial que o permitisse... a ele ou à polícia.
De tal modo que, apresentadas como
prova, seriam as gravações — postas em causa, de imediato, pelo advogado Nuno
Godinho de Matos — a dar cabo de toda a acusação. Inadmissíveis (de acordo com
o Supremo Tribunal de Justiça), as gravações nem sequer foram consideradas no
julgamento de João Raimundo e de Luís Brígida e, provavelmente, nem deveriam
por isso figurar aqui. Mas a leitura das conversas nelas registadas (para as
quais não há, no entanto, espaço que chegue) é exemplarmente ilustrativa de
como Ângelo do Nascimento levou Brígida a dizer coisas que, acompanhadas por
certas declarações vindas de pessoas que conheciam os meandros da lei, podiam
ser utilizadas contra ele... e contra João Raimundo.
E é nessa medida que aqui se
regista o modo como Ângelo gravou as conversas, estimulou o motorista, lhe deu
importância e o pôs a dizer mais do que o bom senso recomendaria. Com o apoio
entusiasmado da Polícia Judiciária.
Natural de Marialva, concelho de
Meda, Luís Brígida estudou na mesma escola em que foi professor João Raimundo
em 1977, na Guarda. Merecedor da confiança do futuro presidente do IPG, ainda
foi convidado por João Raimundo para trabalhar na firma da qual era sócio o seu
antigo professor, a Morgado & Raimundo.
Trabalhou aí até 1992, entrando
para o IPG como auxiliar administrativo em Fevereiro do mesmo ano, ou seja sete
anos depois de João Raimundo ter trocado a vida empresarial pela administração
do IPG.
No IPG, começa a trabalhar como
motorista de João Raimundo em 1992, ganhando a sua total confiança. Sem se
escusar, nas horas livres, a transportar João ou Marília, Luís Brígida põe-se,
também, ao serviço do PSD e acaba por servir Marília Raimundo como voluntário
quando a então governadora civil, trocando o cargo pelo de dirigente do PSD e o
carro do Estado pelo seu próprio carro, se desloca a diversas iniciativas
partidárias. Brígida ganha, assim, uma mobilidade que, de outro modo, não teria
e rapidamente ganha também a visibilidade de alguém que é suficientemente
importante para poder ser motorista pessoal de duas personalidades públicas da
cidade. E é de supor que a importância que adquire lhe abra algumas portas...
É no Verão de 1994 que Luís Brígida
entra em conflito com Jacinto Dias. Este ex-adjunto de Marília Raimundo no
Governo Civil da Guarda, de origem funcionário do IPG, que merecera ainda a
confiança de Marília para poder ser nomeado director do Centro Regional de
Segurança Social, é, presidente da Comissão Política Concelhia do PSD da
Guarda.
Mas esse conflito — essencial para
o desenrolar desta rede de malhas apertadas — não tem, no entanto, razões
políticas. É, apenas, pessoal: ambos aparecem a disputar os favores amorosos de
uma funcionária do Centro Regional de Segurança Social. Toda a gente sabe mas a
cidade ignora-o, fechando os olhos, no seu conservadorismo, a essa rivalidade
que une, da pior maneira, dois homens casados. E a PJ, estranhamente, também vai
ignorá-lo, apesar da sua relevância para todo o caso.
A disputa é cerrada. Brígida, sem
estatuto para competir com Jacinto Dias, vai alimentando obscuros desejos de
vingança, que se corporizam num único objectivo: Jacinto Dias tem que ser
castigado fisicamente. Mas não por ele, claro.
Para concretizar os seus
objectivos, Brígida procura um taxista seu conhecido, Octávio Milagre Mendes, a
quem pergunta se conhece alguém capaz de «dar umas bengaladas» numa pessoa, e
apenas numa, que não nomeia.
Octávio Milagre Mendes parece
desinteressar-se e indica-lhe o nome de Ângelo do Nascimento, a quem Brígida se
dirige, numa correnteza de conversas por onde desfilam — por sugestão de Ângelo
— a maior parte dos nomes que, mais tarde, integrarão a chamada «lista negra» tal
como ela aparece, primeiro, na Comunicação Social e, depois, nas acusações
oficiais que vão tomar por base as gravações dessas conversas de uma forma
juridicamente muito controversa.
As gravações — das conversas entre
Brígida e Ângelo — são feitas pelo próprio Ângelo, e transcritas pela PJ a
partir 20 de Outubro de 1994. É uma operação de iniciativa privada, nunca
sujeita à apreciação de um tribunal para saber da sua legitimidade, que a PJ
apoia, e estimula, com agentes a fotografarem os encontros dos dois homens.
Ilegais por terem sido feitas sem
consentimento, suspeitas de poderem ter sido truncadas, as gravações são, no
entanto, um manancial indispensável de informações sobre a estratégia dos
homens que quiseram afastar João Raimundo... a partir de um devaneio talvez
mais sexual do que sentimental de Luís Brígida.
E como é que uma «história de
saias» inclui mais gente do que o rival directo do ofendido e se transforma
numa «lista negra» de contornos mal definidos? A resposta vai surgindo por
entre os diálogos, vernacularmente coloridos, de Brígida e do cadastrado.
Ângelo, aparentemente bem
industriado e arguto, vai-‑lhe puxando pela língua, simulando mesmo uma
agressão a Jacinto Dias e, segundo garante, aceitando dinheiro, mil contos, que
o pai de Luís Brígida adiantara ao filho para fazer obras na sua própria casa,
como o verifica um agente da PJ... que participa nas investigações até certo
ponto.
Para Brígida, Ângelo do Nascimento,
experiente, de linguagem e recursos fáceis, aparece em cena como a escolha
ideal e é a arma perfeita para atacar Jacinto Dias. Talvez pela aura de homem
de acção que trazia consigo: também conhecido como Ângelo de Trancoso, este
homem tinha no seu currículo a participação em assaltos a sedes de partidos de
esquerda em 1975 e no extinto Movimento Democrático de Libertação de Portugal
(MDLP), organização de extrema-direita que recorrera ao uso de armas e de
bombas, na mesma altura, e que aparece implicada nos incidentes
político-militares de 11 de Março de 1975, em que o General António de Spínola
se vê também envolvido.
O seu cadastro, na PJ da Guarda
pode ser descrito como «negro» mas não levanta dúvidas aos homens da PJ da
Guarda sobre a pessoa que iriam apoiar tão diligentemente.
Seria um homem acima de toda a
suspeita para esses agentes? Talvez... Mas a classificação policial
identifica-o como «falsif. (docum.autom.)uso/» e a ficha que consta do processo
contra João Raimundo inventaria no seu currículo 11 processos por razões
diversas e alinhadas sem preocupações cronológicas: crime de extorsão (em
1986), viciação de viatura automóvel (1979), tráfico de divisas (1977),
corrupção visando a fuga de presos (1983), suspeita de crimes de alta violência
entre 1974 e 1985 (1986), tráfico e viciação de veículos (1991), furto com arrombamento
em estabelecimento (1985) e burla em 500 mil pesetas (1985).
Esta ficha não terá levantado
dúvidas ao agente José Casaleiro e ao subinspector Manuel Portugal, que
conduzem pormenorizadamente as inquirições dele e dos homens que ficarão sendo
conhecidos como membros da «lista negra». E é a eles que Ângelo conta o que
terá acontecido. E a quem apresenta as gravações das conversas que mantém com
Brígida, sem que este saiba que elas estiveram a ser gravadas.
Vejamos como tudo aconteceu.
Em 12 de Julho, Ângelo de Trancoso
— de acordo com o auto de inquirição de testemunha com data de 18 de Outubro de
1994, registado às 17.30 na PJ da Guarda — é contactado pessoalmente pelo
taxista Octávio (Mendes Milagre) de A-do-Cavalo, em Vila Nova de Foz Côa, cerca
das 16 horas, à saída do tribunal da localidade.
Octávio ter-lhe-á dito que dias
antes fora sido contactado «por um tal Luís», motorista do presidente da
comissão instaladora do IPG, que pretendia arranjar alguém «que fosse capaz de
“partir um braço” a uns “artistas da Guarda”».
Conta a PJ: «O depoente (Ângelo)
reagiu logo pela negativa, dizendo mesmo “diz lá ao gajo que tenha juizo senão
ainda leva nos cornos”, isto no pressuposto do depoente ter pensado que esse
assunto poderia estar relacionado com algum amigo seu. No entanto, o depoente
pensou melhor e achou por bem fornecer o seu número de telefone ao Octávio para
que este o transmitisse ao Luís, isto porque o depoente ficou com curiosidade e
quis saber mesmo a que “artistas” se referia o tal Luís.»
O encontro foi marcado «cerca de
oito dias mais tarde» e é nessa reunião, à beira do restaurante «28», que
Brígida avança com as suas pretensões, gravadas por Ângelo com um microgravador
de bolso e transcritas num auto com data de 20 de Outubro de 1994.
Jacinto Dias é um alvo, de imediato
mencionado por Brígida.
Ângelo diz que não conhece. «É o da
Segurança Social», insiste Brígida, «o gajo que manda lá na Segurança Social, o
director daquela merda». E «esse é que tem que as mamar». Não aparece nenhuma
referência, como se dirá depois, à ideia de «partir um braço» a Jacinto Dias.
Apenas, o burlesco «tem que as mamar».
E Brígida pormenoriza,
relativamente a Jacinto Dias: «Bem, a matrícula do carro é BX... BX-99-45... Eu
acho que é assim, não tenho a certeza absoluta, foi uma gaja que mo disse».
Indicando Jacinto Dias como estando no Centro Regional de Segurança Social,
Brígida passa à localização da casa da sua potencial vítima, estimulado por
Ângelo: «É uma casa logo ali, ora bem, quem que me disse que era Valcovo e que
era uma casa à beira da estrada (...) a mim quem me disse foi uma gaja que ele
anda a papar».
Combinando um código para poderem
falar, Ângelo e Brígida começam a deitar contas à vida, com Ângelo a falar em
dois homens que tem que trazer do Porto e Brígida a contar como vai transportar
Marília Raimundo.
Estamos a páginas 6 da transcrição
e esta é a primeira vez que surge uma referência a um Raimundo. Mas apenas na
qualidade de passageiro do carro que Brígida vai guiar. E pode ver-se, logo de
seguida, como os mandantes invocados por Brígida não são um (João?) nem dois
(João e Marília) mas três!
A propósito do dinheiro, Brígida
diz que já tem mil contos em seu poder e que arranjará mais, embora não mostre
saber quanto: «Eu não sei quanto lhes vou sacar aos gajos. Ora bem, eles
estavam na disposição de dar 500 contos cada um... São três.» Três?
A páginas 10, Ângelo e Brígida já
estão de novo em contacto. O primeiro diz que «o homem ontem acabou» e que um
dos rapazes do Porto, que Ângelo diz ter arregimentado, «ainda o feriu».
E é Ângelo que apresenta uma nova
proposta: «Portanto, se o senhor quisesse, podia-se tratar agora dum ou doutro
dos outros. Do Granja ou do outro». É esta a primeira vez que aparece uma
referência ao juiz Granja da Fonseca. E só na boca de Ângelo, nunca na do
motorista.
Brígida responde de forma algo
desinteressada: «Ah, pois. O Granja é lá mais para a frente, isso é lá para o
Natal.»
«E o Guerreiro?», insiste Ângelo,
visando, desta vez, Álvaro Guerreiro, o advogado de Bernardo Duarte, a que
Brígida também não fizera qualquer referência.
«O Guerreiro, não», responde
Brígida, que diz preferir João Gonçalves. E, quando Ângelo lhe fala num
corregedor (o juiz Granja da Fonseca), Brígida recua e já não diz que não nem
que sim.
A conversa mostra, de forma muito
clara, que não havia ordens de ninguém para que se atacasse este ou aquele. E
que os nomes são sempre sugeridos por Ângelo. Que vai insistindo: «... Mas o
senhor faça um telefonema e veja-‑me, que o rapaz ainda está comigo, não é, até
vai comigo, não é? Depois, se for preciso, se ele entender que sim, era melhor
porque evitava de cá voltar (...) Se pudesse ser o corregedor agora, era bom...
Pronto, mas telefone lá para o chefe a ver o que é que ele diz (...) era
porreiro, porque eu tenho cá o homem, está a perceber? Ou se houver aí outro, o
senhor disse que havia mais, diga... Já que estamos com a mão na massa,
fazia-se tudo...»
Mas Brígida esquiva-se.
No encontro seguinte, Ângelo e
Brígida trocam pormenores sobre a suposta agressão de que teria sido vítima
Jacinto Dias, com um cavalo marinho. E Ângelo volta a insistir, invocando o
homem que teria a trabalhar consigo: «... o gajo estava ansioso, porque
queria... uma vez que cá estava e tal, podia fazer...».
Como que tentado, Brígida responde:
«Em relação a isso ainda é cedo...» Mas mais não diz. E a conversa, em
meias-palavras, torna-se enigmática... mas não tanto que não se perceba como
Ângelo introduz os nomes das potenciais vítimas: «Eu acho que o Granja era...
uma altura boa... que é pró alvo... ficar intimidado...»
A conversa evolui, seguidamente,
para outros notáveis locais, que
ambos conhecem, mas depressa volta ao mesmo... e sempre na boca de Ângelo.
Ângelo: «Só que para o Granja tem
de ser mais bem montado, não é?»
Brígida: «Pois é, pá, não pode ser
assim, aí é que tem de ser mesmo bem montado.»
Ângelo, a tomar, novamente, a
iniciativa de falar em nomes de apontar para João Raimundo: «Diz à... tem de se
dizer ao Dr. Raimundo que a coisa é feita como deve ser. Eles conhecem-me bem,
já sabem.» E chega a oferecer-se: «Se for preciso eu falar com eles, eu falo.»
Mais à frente, ambos voltam a
Jacinto Dias e surge, com mais nitidez, a personagem que liga Brígida a Jacinto
Dias, depois de Ângelo se queixar de ter tido dificuldade em localizar a sua
alegada vítima porque «você estava mal informado com a gaja, informou-o mal, a
casa não era aquela».
Responde Brígida: «Pois, a gaja
disse-me que era uma casa avermelhada em Valcovo.»
Ângelo: «A gaja não pode dar uma
informação!?»
Brígida: «Você conhece-a.»
Ângelo: «Quem é?»
Brígida: «... É uma assistente
social, Manela.»
Ângelo, mais íntimo: «Nela?»
Brígida: «Manuela ou Nela, tem um
Panda alaranjado.»
Ângelo: «Assistente social,
assistente social. Onde é que trabalha?»
Brígida: «Lá em Foz Côa.»
Ângelo: «Oh, naquele... naquele...»
Brígida: «Sei que trabalha lá em
Foz Côa, no Centro Regional... não sei quê, delegação regional, Foz Côa, centro
regional ao pé do Tribunal, por trás vê que há uma Casa do Povo e não sei quê,
por baixo tem lá um letreiro do Centro Regional e ela tem um Panda e mora ali
ao pé da Marina, naquele prédio logo a seguir... mas que cheguei lá ir dar a
foda numa soleira... é essa o meu contacto...»
Ângelo: «E essa é que lhe deu a
informação?»
Brígida reitera: «Foi essa que me
deu a informação.»
A conversa passa, de seguida, para
o que teria acontecido a Jacinto Dias, com Ângelo a explicar: «É que podia, bem
podia ser mais, braços partidos... um gajo nem sabe...»
Entre os vários notáveis citados,
nesta conversa que se torna cada vez mais densa, aparece Júlio Sarmento,
presidente da Câmara Municipal de Trancoso, também do PSD, cuja referência
permite aos dois interlocutores fazerem alguns exercícios de análise política
que parecem ter sido utilizados pelos agentes da PJ para chegarem a conclusões...
tão interessantes como os exercícios orais de Brígida e de Ângelo.
Diz Brígida: «Quem é contra ela
[Marília Raimundo] é o Júlio Sarmento, que agora andou-lhe a lançar a rede para
voltar a ele... a eles, porque o Júlio Sarmento parece que já anda em guerra
com eles, com os outros.»
Ângelo: «Mas também se porta mal, o
Sarmento?»
Brígida: «Também se portou mal.»
Ângelo: «Portou?»
Brígida: «Carago, esse foi o maior
porco de todos os tempos, caralho!»
Ângelo: «Ai é?»
Brígida (na pele de analista político):
«Esse gajo. Sabe o que é que disse quando foi na votação entre ela e o Álvaro
Amaro para a distrital, para provar que voto contra a Dra. Marília... está aqui
o meu voto e mostrou a toda a gente... esse gajo é porco, mas agora disse-me
ele na... em Sortelha que estava a conversar com ele e tal e não sei quantos e
ele estava a dizer que já não pode ver os gajos. Prontos, já está arrependido
do que fez. Porque ele tinha prometido ao Dias Loureiro [Ministro da
Administração Interna], isso sei-o eu, já o sabia antes, ele tinha prometido ao
Dias Loureiro que votava na Marília, votava nele, porque ao votar na Marília
estava a votar nele; aquilo é um PSD loureirista e nogueirista [Fernando
Nogueira, Ministro da Defesa e sucessor imediato de Cavaco na liderança do PSD
em 1995], é a guerra do partido, e o Cavaco, como sempre, é que está a dominar
aquelas merdas. Nogueiristas de um lado, loureiristas doutro, a Marília é
loureirista, Loureiro, o Dias Loureiro telefonou a uma série de gajos, um deles
foi o Sarmento, para votarem nela porque, pronto, com o outro gajo não queria
nada porque sabia que eram os dois da secção do Nogueira...»
A conversa é recorrentemente
circular: o ponto de chegada é sempre a hipótese, avançada por Ângelo, de que
há mais gente a abater, sempre a pretexto de Jacinto Dias: «... e há o outro!»
«Eu tenho a certeza que aquele é só
para ver o que é que isto dá e depois é que...», diz Brígida.
E torna Ângelo: «O Granja é que é
de certeza, não é?»
Responde Brígida: «...eu vou falar
com ele... antigamente, sei eu que queriam...»
E insiste Ângelo: «E ao outro gajo,
se quiserem também, digam (...) Quando começarem a mamar, agora por tabela,
eles ficam todos fodidos e... acabam com a política».
Comenta Brígida: «Acabam com as
politiquices de merda... que anda aí esse porco do caralho.»
E apressa-se Ângelo: «É uma
vergonha, então do mesmo partido!»
Já a despedirem-se, Ângelo não
regateia os seus préstimos por uma última vez: «Se quereis mais é mais... aqui
não há cá favacas.» E, para ser mais convidativo, reforça que não há problemas
de dinheiro: «Você diz, eh pá, o dinheiro não importa, o dinheiro não está em
causa, quereis mais é mais, agora é melhor que nunca, até porque ele disse-lhe
tudo terminou. Não terminou. Então mas agora é todos os dias. Não terminou.
Ainda vai ser mais vezes e ele bom. Pouca conversa com queixas.»
Brígida acolhe bem a determinação
de Ângelo. Mas este, que contara com a benevolência da Polícia Judiciária para
conseguir que os seus agentes fotografassem alguns dos encontros, já estava
prestes a entregar Brígida. Enquanto os homens da «lista negra» se organizavam
e começavam a contar à Polícia Judiciária a sua própria versão da história para
acabar de tecer a teia destinada, por enquanto, ainda só a João Raimundo.
CAPÍTULO 5
OS HOMENS DA «LISTA NEGRA»
As gravações, que não foram aceites
como meio de prova, são, quando conjugadas com os documentos que se lhes
sucedem cronologicamente e com certos depoimentos, essenciais para se perceber
como se transformaram no pilar fundamental que podia sustentar a acusação... se
os investigadores não quisessem (ou não pudessem?) ir mais longe.
De posse das gravações, que até
poderão não ter sido bem ouvidas, o agente Casaleiro, da PJ da Guarda, dirige
uma exposição ao subinspector da PJ da Guarda, Manuel Portugal, em 11 de
Outubro de 1994, para expor já a base da teoria que a acusação iria perfilhar
O crime que se apurava, segundo J.
Casaleiro, era de coacção, com três situações «perfeitamente distintas»: «Uma
directamente relacionada apenas e só com o magistrado Dr. Juiz Corregedor
Granja da Fonseca, outra que engloba os Drs. Soares Gomes, Jacinto Dias, João
Gonçalves entre outros e, por último, a relacionada com o advogado Dr. Álvaro
Guerreiro.»
E o agente Casaleiro tipifica as
situações:
«A primeira insere-se na polémica
gerada pelo julgamento do Dr. João Raimundo e outros, relacionada com questões
directamente ligadas ao Instituto Politécnico da Guarda e, assim sendo, o
visado é o Dr. Juiz Granja da Fonseca — Juiz Presidente do Tribunal Judicial da
Guarda — que, pela circunstância de ter resistido a pressões de vária ordem e
ter, em sede de Tribunal Colectivo, proferido sentença condenatória, estará
ameaçado de eliminação pura e simples, se o acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, para onde foi interposto recurso, confirmar ou agravar a condenação.
«A segunda tem contornos
iminentemente políticos. Ocorre, porém, no decurso do julgamento atrás
aludido.Nesse espaço de tempo, decorreram eleições para a Comissão Distrital do
PSD da Guarda, até essa altura dominada pelo Dr. João Raimundo [que, no
entanto, não tinha actividade partidária para lá da direcção dos TSD] e sua
esposa Marília Raimundo.»
Referindo-se à «criação» de duas
facções (Marília Raimundo e Álvaro Amaro), J. Casaleiro envereda pela análise
política e anota, a seguir, que «em função das divergências políticas a que se
fez referência, alguns apoiantes da primeira deslocaram-se, dando o seu voto à
facção apoiante do Dr. Álvaro Amaro, que acabou por ganhar as eleições. Neste
último grupo, englobam-se o Dr. Jacinto Dias, o Dr. Soares Gomes, Dr. João
Gonçalves e outros. Por essa sua tomada de posição e como mero acto
revanchista, considerado “traição”, estarão também ameaçados, não de
eliminação, mas a serem vítimas de agressões físicas que os façam recordar a
sua falta de lealdade à primeira facção.»
Quanto à «terceira e última», J.
Casaleiro coloca Álvaro Guerreiro no centro das atenções «pelo facto de ter
sido um dos advogados de acusação no julgamento a que foi sujeito o Dr. João
Raimundo e outros», aludindo ao «caso Bernardo Duarte».
Depois, apresenta a sua conclusão,
embora remeta para outrém uma afirmação sobre o carácter do visado: «Facilmente
se poderá depreender que o Dr. João Raimundo é o grande vencido em toda esta
sucessão de factos. Sendo pessoa de carácter profundamente revenchista, ao que
nos garantem, não surpreenderá que seja o maior interessado e, assim, o
principal mentor das acções de violência e intimidação que se propõe
desenvolver, em virtude de perda de poder político e influência sobre
terceiros.»
À margem, J. Casaleiro anota que
«também quanto nos informaram, [João Raimundo] dirigirá o citado instituto com
“mão de ferro”, tipo “ditador”, do género de “quem não é por mim é contra mim”,
o mesmo parecendo acontecer a nível político partidário.» Note-se que a fonte
não é citada e a informação entra em contradição com tudo aquilo que colegas,
imprensa e alunos diziam de João Raimundo, que não era presença nada assídua na
organização local do PSD.
Depois, o agente dá como certo que
ele «tem no seu motorista o homem de mão para os chamados “trabalhos sujos”,
sendo este último quem foi encarregue de efectuar contactos que permitissem
conseguir alguém que pudesse dar execução às acções planeadas».
E afirma: «Também, tanto quanto se
sabe, o timing para a execução das
acções planeadas terá sido alterado, passando a ser prioritário tratar primeiro
dos “traidores” e só depois do juiz, porque interessará, também, saber o
resultado do recurso apresentado ao Supremo Tribunal de Justiça.» Ou seja, não
é visto como importante o facto de ter sido Brígida a falar no nome de Jacinto
Dias, sendo Ângelo o autor da referência aos outros, juiz incluído. De tudo
isto conclui o polícia que há uma lista de vítimas a abater e que é mandante
João Raimundo.
Esta tese vai ser corroborada pelas
declarações dos homens da «lista negra» em uníssono.
Significativamente, o primeiro a
ser ouvido é o juiz Granja da Fonseca, no próprio dia 11 de Outubro, num
desfile de depoimentos que só conhece uma certa acalmia com a prisão de Brígida
no dia 27 de Outubro.
No seu depoimento, o juiz diz que
ainda corria o julgamento do «caso Bernardo Duarte» (ou seja, antes de
Fevereiro desse ano de 1994...) quando, por Álvaro Guerreiro, «foi informado
que o Dr. Raimundo, através de um seu funcionário, mais concretamente o
motorista Luís, havia contactado um indivíduo na zona de Foz Côa» para o
«eliminar». Informado por Álvaro Guerreiro, que era parte interessada, note-se.
E continua: «Algum tempo depois,
terminado já o processo em 1.ª instância, foi [o juiz] avisado pelo Dr. António
Machado, conservador do Registo Predial da Guarda, que, segundo informação que
lhe havia sido prestada pelo Dr. Fernando Lopes, conservador do Registo Predial
de Trancoso, o Ângelo de Trancoso havia sido contactado pelo Luís, motorista do
Dr. Raimundo, actuando este Luís em nome do referido Dr. Raimundo para que o
dito Ângelo eliminasse o depoente, mediante quantia a fixar pelo Ângelo, não
havendo limites no “preço”.» Ou seja, não havia segredo sobre o assunto, que
seria, praticamente, do conhecimento público.
Granja da Fonseca diz que julgou
que essa situação não fosse recente mas, «alguns dias depois, já no início das
férias judiciais» (depois de 15 de Julho, portanto) é avisado por Álvaro
Guerreiro de que «as insistências continuavam por parte do Luís»,
declarando-se, entretanto, Álvaro Guerreiro também como «visado».
E prossegue o auto de inquirição:
«No entanto, como havia um bom relacionamento entre ele [Guerreiro? Granja da
Fonseca?] e o Ângelo de Trancoso, estava em crer que o Ângelo poderia não
actuar contra ele, mas que se o Luís visse que o Ângelo não fazia o que ele
pretendia, podiam ser contactados outros indivíduos, para eliminar quer o
depoente [Granja da Fonseca] quer o Dr. Guerreiro. Garantiu ainda que o Ângelo
já lhe tinha dado esta informação há uns tempos antes e que ele Álvaro
Guerreiro lhe tinha pedido que quando o Luís o contactasse arranjasse algumas
provas que permitissem, se necessário, haver elementos que comprovassem a
actuação do Dr. Raimundo através do dito Luís.
«Já em Setembro de 94, o Dr.
Guerreiro telefonou ao depoente a dizer que o Ângelo de Trancoso tinha
conseguido obter uma gravação duns encontros com o Luís e que logo que
obtivesse a respectiva gravação a faria chegar ao depoente. Entretanto, como ao
chegar de férias encontrou os cordéis da roupa cortados e queimados, uma antena
da aparelhagem cortada e as persianas de uma janela danificadas, tudo sito nas
traseiras e parte lateral da residência do depoente e porque foi conhecedor na
plentitude de todos os factos supra mencionados, associou a uma eventual
ligação com os factos que vem descrevendo, pelo que deu conhecimento a esta
Polícia Judiciária, receando que pudesse ser o prenúncio do cumprimento do
“trabalho” mandado executar pelo Dr. Raimundo através do Luís. (...) Que o
depoente nunca teve quaisquer relações ainda que institucionais com o Dr.
Raimundo e pensa que tudo isto poderá ser uma atitude de vingança face ao
resultado do julgamento a que ele foi submetido.»
Jacinto Dias entra em cena, a
seguir, em 12 de Outubro, garantindo que fora Álvaro Guerreiro a dar-lhe
conhecimento «de que o Ângelo de Trancoso havia sido contratado pelo motorista
do Dr. Raimundo, de nome Luís, para que o dito Ângelo arranjasse forma de o depoente,
o Dr. Álvaro Guerreiro, o corregedor Dr. Granja da Fonseca e outras
pessoas serem devidamente tratadas, querendo com esta afirmação dizer que
deveriam ser vítimas de uma qualquer agressão».
Os dois homens voltam a
encontrar-se, já na presença de Ângelo, «pessoa que o depoente apenas conhecia
de vista», que o faz ouvir algumas das gravações que fizera. «O depoente
[Jacinto Dias] após ouvir a gravação, levou bastante a sério aquilo que a seu
respeito estava planeado, não só porque conhece bem o Luís, motorista do Dr.
Raimundo e este último.» Como seria de esperar, Jacinto Dias diz de João
Raimundo que «tinha a percepção e ainda tem de que é pessoa para levar por
diante o que havia planeado» e afirma que aquele lhe dissera «pessoalmente que
qualquer dia mandaria dar uma sova no Dr. Granja da Fonseca».
As explicações de Jacinto Dias
remetem para «o facto do depoente e alguns dos visados terem retirado o seu
apoio político à esposa do Dr. Raimundo».
E acrescenta, ainda, que, «após ter
dado uma entrevista numa rádio local, recebeu um telefonema da Dra. Marília,
ex-governadora civil e esposa do Dr. Raimundo, no seu serviço, pela linha
directa, dizendo “o snr. meteu-se com a minha família, ainda vai ter muitas
surpresas” desligando de imediato, sem dar tempo ao depoente de dizer o que
quer que fosse». Entre esse telefonema (que não tem prova possível) e «o
conhecimento dos factos» terá passado mês e meio.
Jacinto Dias revela, ainda, que
combinara com Álvaro Guerreiro e com Ângelo que «faria correr nos meios próprios
da cidade e a nível partidário que tinha sido agredido não sabendo por quem».
Porque, disse, sabia que Ângelo «não actuaria», conviria que «os interessados
pensassem o contrário» e para que «não fossem, eventualmente, contratar outra
pessoa».
Jacinto Dias fornece mais algumas
indicações importantes: que não fora «molestado» nem recebera «qualquer tipo de
ameaças», que estava «convicto que é o Dr. Raimundo que está por detrás de toda
esta trama, como vingança, pelo facto de lhe ter retirado o seu apoio político»
e que Octávio Milagre Mendes, de A-dos-Cavalos, lhe confirmara que «tinha sido
contactado pelo Luís para que arranjasse alguém que pudesse partir um braço a
um “artista” da Guarda mas não mencionou nomes».
Álvaro Guerreiro, ouvido a 17 do
mesmo mês de Outubro, não diverge. Começa por introduzir um elemento dramático:
a narrativa de como o seu carro fora atingido com o que declara ter sido tinta
branca durante a noite (que, no entanto, pôde remover sem que ficassem danos),
e relaciona o caso com João Raimundo. «Na altura, o facto foi comentado na
Guarda, havendo desde logo pessoas que associaram a situação ao facto do
depoente ser um dos advogados de acusação no julgamento do presidente do
Instituto Politécnico da Guarda...», afirma, segundo depoimento à PJ.
A seguir, faz-se referência à
existência de «telefonemas anónimos, alguns em que eram proferidas, a
despropósito, palavras obscenas, outras com ameaças, nomeadamente à sua
integridade física e de coação».
Nada disto será provado no
julgamento.
Álvaro Guerreiro faz recuar a
primeira intervenção de Brígida a Fevereiro de 1993 (com um cauteloso
«talvez»).
E continua, afirmando que, nessa
altura, já o motorista andaria a oferecer dois mil contos a quem desse «uma
sova» a Bernardo Duarte, Rui Isidro (jornalista de uma rádio local), Granja da
Fonseca e ele próprio. Pelo meio, ficam duas sugestões: o motorista a perguntar
se o óleo queimado «dava cabo da pintura dos carros» e Bernardo Duarte «com o capot do seu carro todo furado por um
objecto que pensava ser do tipo de uma picareta».
Também disto nada se provou... nem
causou estranheza que uma ameaça de tal calibre fosse tão conhecida sem que
nada fosse feito para a travar.
Em 18 de Outubro, é ouvido Ângelo
do Nascimento, que remete o começo da operação para 12 de Julho, quando diz ter
sido contactado «pelo taxista Octávio de A-do-Cavalo».
E prossegue o auto de inquirição:
«O referido Octávio disse ao depoente que dias antes tinha sido contactado por
um tal Luís, que seria de Marialva, e que trabalhava na cidade da Guarda como
motorista do presidente da comissão instaladora do IPG da Guarda que pretendia
arranjar alguém que fosse capaz de “partir um braço” a uns “artistas da
Guarda”»
Negando-se, primeiro, Ângelo
«pensou melhor e achou por bem fornecer o seu número de telefone ao Octávio
para que este o transmitisse ao Luís, isto porque o depoente ficou com
curiosidade e quis saber mesmo a que “artistas” se referia o tal Luís».
A curiosidade de Ângelo de Trancoso
é esclarecida «cerca de oito dias mais tarde», quando tem lugar o primeiro
encontro. Se algumas coisas condizem com o teor das gravações, feitas por um
gravador pequeno cuja qualidade chegou a ser testada em tribunal, outras nunca
lá chegarão. Por exemplo, Ângelo diz que Brígida se declarara «já possuidor de
uma verba de mil e quinhentos contos para fazer face às despesas e se
necessário fosse arranjaria mais dinheiro, sem qualquer problema.» E que o
objecto da sua ira era Jacinto Dias, ao que Ângelo confessa que disse que sim,
«tendo em vista explorar a situação».
O auto volta, em seguida, atrás no
tempo para explicar como Ângelo se precavera com o gravador e tornara possível
a obtenção do que seria um alegado meio de prova... ainda em Julho, ou seja,
três meses antes:
«Ainda antes do encontro do depoente
com o Luís, nesta cidade, o depoente foi de imediato dar conhecimento da
situação ao Dr. Álvaro Guerreiro, advogado com escritório nesta cidade, pessoa
da sua máxima confiança, e com quem mantém relações há bastante tempo, quer de
amizade quer profissionalmente. Aliás, o depoente pretendeu confirmar ao Dr.
Álvaro Guerreiro uma situação que já anteriormente tinha ouvido comentar e que
nessa altura não sabia se ela corresponderia, ou não, à verdade. Para melhor se
assegurar que nada lhe pasaria despercebido, o depoente muniu-se de antemão de
um pequeno gravador, aparelho com o qual efectuou o registo desta e doutras
conversas com o Luís e das quais sempre deu conhecimento ao Dr. Álvaro
Guerreiro.»
E a ameaça contra Granja da
Fonseca? Ela também surge de forma diferente no depoimento de Ângelo.
«Se não está em erro», prossegue o
auto, Ângelo «voltou a encontrar-se no dia seguinte com o citado Luís junto ao
Estádio Municipal da Guarda».
Nessa altura, o que já consta das
gravações, Brígida queixa-se da falta de precisão das indicações sobre a casa
de Jacinto Dias. Mas, no depoimento, não vem à baila a descrição colorida feita
por Luís da mulher que lhe dera as informações.
Mesmo assim, Jacinto Dias, segundo
afirma Ângelo — iludindo Brígida — «já as mamou e mamou bem, vai levar mais e
não há queixas para ninguém». Brígida, assegura Ângelo, ficou satisfeito com a
informação. E continua o auto, agora com nova entrada em cena do juiz Granja da
Fonseca... em afirmações que contrariam as gravações!
Por exemplo: que Brígida declarara
ser desejável que «o Dr. Granja da Fonseca, corregedor da Comarca da Guarda,
tivesse um “tratamento” do mesmo tipo mas teria que ser “monumental”. Não seria
para o matar, rindo-se quando produziu tal expressão, mas teria que ser algo que
desse nas vistas pelo que tinha que ser tudo muito bem pensado e planeado,
devendo ocorrer no espaço de tempo que medeia entre o mês de Outubro e o Natal,
altura em que se previa resultados do julgamento do recurso que o “chefe”
interpôs para o STJ. Esta explicação levou logo o depoente a associar que o
“chefe” seria o Dr. João Raimundo, pois este tinha efectivamente interposto
recurso para o STJ em função duma sentença condenatória de que tinha sido alvo
num processo relacionado com o IPG, cujo juiz presidente foi o Dr. Granja da
Fonseca.»
Mas não é isto, no entanto, o que
consta das gravações! Nem, tão pouco, o que Ângelo conta a seguir: que Luís
dava «prioridade» no tratamento a João Gonçalves, do Instituto da Juventude, e
a Soares Gomes, do Centro de Emprego e Formação Profissional.
Outra divergência entre o
depoimento e o teor das gravações, é o que se refere ao dinheiro, como mais
tarde se confirmará: «Esclarece ainda que o Luís prometeu ao depoente
entregar-lhe uma quantia que rondaria os mil contos, sendo certo que o depoente
nunca os viu nem recebeu qualquer tostão.»
Seis dias depois, a 24, Ângelo
apresenta outra versão: «Na verdade, o depoente recebeu a importância de um
milhão de escudos, por duas vezes, para executar o trabalho. Só não o disse
logo no início com receio de poder vir ser incriminado e ainda não se ter
aconselhado com o seu advogado. O depoente tem esse dinheiro em seu poder e
colocá-lo-á à disposição das autoridades, logo que tal lhe seja solicitado, não
tendo sido nunca sua intenção ficar com o mesmo. Esclarece que logo no primeiro
contacto recebeu das mãos do Luís em numerário a quantia de quinhentos contos e
dois dias depois, segundo crê, podendo apenas referir que foi no domingo
seguinte, uma importância igual. Calcula que o primeiro dinheiro foi recebido
em 19 ou 20 de Julho do ano em curso. Mais refere que na opinião do depoente, o
Luís terá ficado para si com uma importância bem superior à que entregou ao
depoente.»
A questão do dinheiro não deixa de
ser importante para o deslindar da meada. Havia ou não? Quem o tinha dado a
Brígida?
Nas gravações, ele e Ângelo quase
não se lhe referem. O próprio acabou por explicar que fora o pai que lhe dera
mil contos, para o ajudar a fazer obras na casa. Ângelo conservou o dinheiro em
seu poder durante mais algum tempo e, até ao julgamento, quando os juizes da
Covilhã decidem que a soma é apreendida, questão que, no entanto, parece pouco
importante. Tão pouco que, sendo objecto de uma brevíssima pesquisa por outro
agente, depressa desaparecem dos documentos do processo quaisquer referências
ao dinheiro.
No auto a que fazíamos referência,
encontram-se outras revelações, feitas por Ângelo, que trazem alguma luz ao
modo como os acontecimentos se encadearam.
Ângelo afirma que, «sobre o
dinheiro, deu conhecimento ao Dr. Álvaro Guerreiro que, como seu advogado, lhe
deu de conselho que simulasse as agressões sem as praticar mas que deveria
acautelar não recebendo nunca qualquer importância, fosse a que título fosse».
Ou seja: como o esclarece o texto das gravações, não houve agressão.
E revela: «Para além do mais, foi
provocado um encontro entre o depoente, o Dr. Álvaro Guerreiro e o Dr. Jacinto
Dias, visando dar a conhecer ao Dr. Jacinto Dias a gravidade da situação e ao
mesmo tempo o depoente combinar com ele, Dr. Jacinto, a estratégia a adoptar no
sentido de convencer o Luís e o “chefe” de que a agressão tinha efectivamente
ocorrido.»
Ângelo também reconhece que, no
seguimento da estratégia adoptada pelo grupo, a insistência era sua... embora
sem êxito: «Mais se recorda que em outros contactos, o depoente insistia para
que o “trabalho” relativamente ao Dr. Granja da Fonseca fosse efectuado mas o
Luís dizia não ter “luz verde do chefe” para que assim fosse, que ele estava
como já anteriormente referiu, em férias no Algarve e que a ideia dele se
mantinha ou seja, a acontecer só após o conhecimento do resultado do recurso.
Mesmo assim, o depoente, prosseguindo na sua estratégia de convencer o Luís do
seu total empenhamento nas acções a realizar, disponibilizou-se a ir ao
Algarve, se tal fosse necessário, para com o “chefe” e esposa acertarem os
pormenores tanto mais que o depoente quis aproveitar o facto de Luís ter
referido que a Dra. Marília Raimundo conhecia o depoente. O Luís, no entanto,
não manifestou disponibilidade para que tal encontro viesse a ocorrer.»
No mesmo depoimento, de 24 de
Outubro, Ângelo dá uma explicação muito especial para as suas insistências: «O
facto de, em determinado momento da gravação, ser o depoente a insistir no nome
do Dr. Granja da Fonseca pretendeu apenas saber o momento em que era pretendida
a execução da ameaça, tendo em vista proteger a figura em causa. Mais refere
que quando o Luís se referia que o caso do juiz tinha de ser muito bem
planeado, tinha que ser monumental, o depoente pretendeu saber se se tratava de
o matar, respondendo aquele que não mas ria-se a bom rir.» A PJ toma como
racional e legítima esta explicação.
É ainda Ângelo, nesse depoimento de
24 de Outubro, que fornece mais elementos. Sem citar as conversas gravadas mas
garantindo, como único interlocutor de Brígida e sem testemunhas, que ele
dissera certas coisas que podiam, nessa altura, consolidar a tese da «lista
negra» e tapar quaisquer lacunas que as gravações pudessem ter. Os agentes não
parecem ter sido assaltados por dúvidas.
Ouçamos o antigo comando do MDLP: «No entanto, deseja
esclarecer que alguns contactos foram feitos fora do carro e nessa altura não
foi possível fazer qualquer gravação, porque o depoente não quis correr o risco
do Luís se aperceber da situação. Foi numa das conversas fora do carro que o
Luís disse taxativamente que o seu “chefe” pretendia dar uma “sova monumental”
no juiz presidente do Tribunal da Guarda, Dr. Granja da Fonseca, no Dr. Soares
Gomes e outros que agora não recorda mas que se encontram referidos na gravação
que entregou a esta Polícia. O certo é que, talvez já pelo facto de saber que o
depoente era amigo do Dr. Álvaro Guerreiro, já não se referiu a ele. Nunca o
Luís referiu o nome do mandante, tratando-o sempre por “chefe” e só mais tarde
e por insistência do depoente, tal como consta da gravação, é que confirmou ser
o Dr. João Raimundo o mandante.» Não há testemunha, gravador ou documento que
comprovem a integridade da denúncia.
Nas suas declarações, Ângelo
garante, ainda, que o caso já vinha de 1993 e que o primeiro contactado fora
mesmo o seu irmão Mário «e no momento em que se encontrava presente o Dr.
Álvaro Guerreiro». Mário, «que presentemente se encontra fora do País em parte
incerta», teria dito que «o Luís, motorista do presidente do Instituto
Politécnico da Guarda, o havia contactado, visando arranjar alguém que fosse
capaz de dar uma “sova monumental” no juiz presidente da Comarca da Guarda e no
próprio Dr. Álvaro Guerreiro», já que o segundo era o advogado de acusação no
«caso Bernardo Duarte».
A avaliar pela forma como Ângelo se
expressa, nessa altura ninguém — nem o irmão, nem ele, nem Álvaro Guerreiro...
— terá levado a sério a eventual ameaça de Brígida: «O depoente ficou um pouco
surpreso e zangado e disposto a que essa situação não viesse a ocorrer, quer
relativamente ao seu amigo Dr. Álvaro Guerreiro, quer relativamente ao próprio
juiz. No entanto, durante um tempo não se ouviu falar mais do assunto.»
Esta displiscência relativamente ao
tempo que ia passando não condiz, no entanto, com a alegada gravidade da
ameaça, nem por parte de Ângelo nem por parte de Álvaro Guerreiro.
Álvaro Guerreiro torna a ser ouvido
pela PJ da Guarda em 3 de Novembro, já depois de Brígida estar preso.
As suas palavras, que parecem
servir para consolidar apenas o que Ângelo já tinha dito (como se ambos
tivessem noção de que algumas contradições poderiam deitar tudo a perder...),
contêm algumas revelações interessantes.
Entre elas, está a consideração
tácita de que a gravidade da ameaça que pesaria sobre o grupo, ou parte dele,
não era, afinal, suficiente para suscitar preocupações de monta entre Julho e
Outubro. Ou seja, num período de três meses em que tudo podia acontecer.
Álvaro Guerreiro diz, nas suas
declarações, que «o Ângelo procurou logo, no dia 12 de Julho do ano em curso,
contactar o depoente, telefonicamente, mas, como não o conseguiu, decidiu, dada
a urgência e o risco de perder o contacto com o Luís de aceitar a marcação de
um encontro este em Vila Nova de Foz Côa».
E explica o porquê das gravações:
«Porque anteviu a seriedade e gravidade dos factos, por sua livre iniciativa
[Ângelo] decidiu munir-se de um gravador para assim registar e, mais tarde, se
necessário, poder reproduzir com toda a exactidão todo o teor da conversação
com o Luís.» No encontro que terão tido — e cujas circunstâncias não são
indicadas com clareza —, «o Ângelo tirou da algibeira um microgravador que
colocou em cima da secretária do depoente e que accionou em reprodução de uma
cassete contendo a dita conversação, numa primeira, em Foz do Côa e em dia que
o depoente não pode precisar mas que se situou entre o dito dia 12 e 19 de
Julho do ano em curso».
E, sobre a gravação, afirma
Guerreiro:
«Do que recorda ter ouvido nesta
gravação, pode dizer que pelo som da cassete lhe pareceu que a mesma foi
gravada no interior de uma viatura (...), tendo ele depoente, reconhecido a voz
do Ângelo em diálogo com outro indivíduo que o Ângelo referiu ser o Luís, facto
este que veio a confirmar pelo teor das próprias palavras do Luís nesta e em
posteriores gravações. A conversa inicialmente era banal, referindo o calor que
fazia e as vantagens do ar condicionado dos automóveis e, a pouco e pouco, o
dito Luís foi “entrando” no assunto, sempre com cautela, revelando reservas, um
certo secretismo e dando a perceber que dada a delicadeza do mesmo, por ser
“pouco claro” obrigava a segredo. O Ângelo dizia que ele só falava se quisesse
mas que se dissesse do que se tratava, porque caso não lhe interessasse lho
diria, imediatamente, e tudo ficava terminado.»
Mais à frente, Álvaro Guereiro
fornece uma explicação para a entrada de Jacinto Dias na trama:
«O Ângelo disse ao depoente que lhe
pedia para falar com o Dr. Jacinto Dias para lhe contar o que se passava e
lhe sugerir que, no dia seguinte, aparentasse, em simulação, ter sido agredido
fisicamente porque, assim, se conseguiriam dois objectivos: por um lado, evitar
que o Dr. Jacinto gosse agredido na realidade por outrém e, por outro lado, o
próprio Luís e quem estava por trás dele ficassem convencidos que a agressão
tinha sido concretizada conforme a “encomendaram”. O depoente, nesse mesmo dia,
tentou encontrar o Dr. Jacinto Dias, o que não conseguiu.»
E, sobre o encontro, mostra como
esteve, também, na origem da fingida agressão a Jacinto Dias:
«No dia seguinte, 20/7/94, o
depoente telefonou para a casa do Dr. Jacinto Dias cerca das 8.15 da manhã e
combinou com ele um encontro, entre as 10h30m e as 11 horas do mesmo dia. Nesse
encontro, transmitiu-lhe o pedido do Ângelo e, simultaneamente, disse-lhe
também que era desejo do Ângelo que ele próprio ouvisse a gravação para se
inteirar da gravidade do assunto. O Dr. Jacinto acedeu e, cerca das 19 horas do
mesmo dia, conjuntamente com o depoente e o Ângelo, ouviu a gravação, tendo de imediato
e espontaneamente reconhecido a voz do Luís Brígida.
«O Dr. Jacinto e o Ângelo
combinaram então que aquele, no dia seguinte, faria constar na Guarda quer em
conversas diversas, quer pelo seu aspecto físico, que tinha sido agredido,
violentamente, por dois indivíduos nas duas noites anteriores. Que na primeira,
ou seja, na terça-‑feira o tinham tentado agredir mas que ele empunhou uma
pistola, o que afugentou os agressores e que na segunda, junto de sua casa em
Valcovo, não tinha tido hipótese de se defender e que tinha sido agredido por
todo o corpo menos na cara, inclusivamente com um chicote tipo cavalo marinho.»
Esta artimanha terá, supõe-se,
convencido Luís Brígida. Será, no entanto, legítimo perguntar se, satisfazendo
um rival amoroso, seria suficiente para convencer um adversário político...
O resto do depoimento de Álvaro
Guerreiro é omisso quanto a esse aspecto mas revelador quanto à preocupação que
tinham quanto à alegada vendetta de
João Raimundo: «Passaram-se vários dias, não pode precisar quantos, em que o
depoente não viu nem o Ângelo nem o Dr. Jacinto.» Essa ausência não o
preocupou. Mas suponhamos que Ângelo ou Jacinto Dias tivessem sido vítimas de
qualquer agressão? Não seria natural que Álvaro Guerreiro se mostrasse
preocupado? Afinal, não estava ele, também, ameaçado?
«Crê ter sido no princípio de
Agosto ou finais de Julho que o Ângelo o voltou a contactar», continua Álvaro
Guerreiro, «dando-lhe a conhecer mais três gravações feitas na mesma cassete e
depois da já referida.»
Em novas declarações, a 10 de
Novembro — cinco dias antes da detenção de João Raimundo —, Álvaro Guerreiro
continua a desatar o fio do tempo e a acumular indícios com os quais a PJ
consolida a tese da «lista negra», sem dúvidas nenhumas:
«Em princípios de Agosto de 1994,
em dia que não sabe determinar, o depoente deslocou-se ao Tribunal da Guarda a
fim de participar numa diligência relacionada com um assunto profissional e,
por mero acaso, encontrou-se aí com o Dr. Granja da Fonseca, tendo, então,
aproveitado o ensejo para lhe dizer que a anterior ameaça de Marialva voltava a
surgir, agora com maior credibilidade e com provas — gravações — que ele
depoente tinha ouvido no seu escritório mas que não lhe podia reproduzir por
considerar que as mesmas estavam sob sigilo profissional.
«No entanto, não deixou de alertar
o Dr. Granja da Fonseca para tomar cuidado. Pelo Dr. Granja da Fonseca foi dito
que estava tranquilo e que a decisão tomada não era só dele mas de um tribunal
colectivo que a havia ditado em consciência e com isenção, mas que não deixaria
de considerar, como atentatória dessa isenção e da imunidade dos juízes
qualquer ameaça que viesse minimamente indiciada, pelo que solicitava ao
depoente que tentasse fazer com que o Ângelo do Nascimento colocasse à disposição
dos organismos de investigação todos os elementos de prova que conseguisse
reunir.
«Porque entretanto também o
depoente se ausentou de férias da cidade da Guarda deixou de ter contacto com o
Ângelo do Nascimento e só em meados de Setembro voltou a receber este no seu
escritório, o qual, nessa altura, lhe deu a ouvir o resto da gravação que já
havia sido feita em finais de Julho ou princípios de Agosto.»
Nas duas declarações, Álvaro
Guerreiro volta a afirmar que Luís indicara Granja da Fonseca como pessoa a
agredir e que identificara João Raimundo como seu mandante mas introduz um
elemento novo:
«Em toda a gravação, quanto a ele
depoente, pelo Ângelo é perguntado, segundo recorda: “Então e o Guerreiro?”, ao
que o Luís respondeu: “O Guerreiro não. É o João Gonçalves”. O depoente está
convicto que o seu nome não é referido e é até rejeitado.»
E, logo de seguida, garante não ter
«qualquer problema de ordem pessoal contra o Luís», que «quanto ao Dr. Raimundo
e à esposa nunca teve qualquer problema de ordem pessoal com os mesmos e muito
menos de ordem política», tendo sido — até «já depois de ter tido conhecimento
que era visado, no contacto havido em Marialva para ser “batido” a troco de
dinheiro» — convidado, por Marília Raimundo, para encabeçar a candidatura do PSD
à Câmara da Guarda.
Álvaro Guerreiro ou não queria
acreditar na «lista negra» ou exclui-se dela, embora o seu nome ainda venha a
aparecer, sempre indicado por fontes policiais. Mas não chegará a fazer como
Jacinto Dias, que recusa proceder criminalmente contra João Raimundo.
Apesar de, aparentemente, se
mostrar reticente a entrar nesse grupo, o advogado de Bernardo Duarte ainda
atira achas para a fogueira: há chamadas telefónicas anómimas para a sua casa
(que, se são atendidas pela sua filha de seis anos de idade, contêm
«obscenidades») que relaciona com o «derramamento de tinta no carro» e com «o
seu próprio espírito de intranquilidade».
Tudo isto foi suficiente para a PJ
deter João Raimundo, a 15 de Novembro. Mas, preso este, havia um problema:
Marília Raimundo.
E, para chegarem a Marília, o
processo vai ser semelhante: um cadastrado, um encontro furtivo (que, dessa
vez, nem existiu), uma nova ameaça sob encomenda e pagamento em dinheiro. A
engrenagem começa a ser posta em marcha, enquanto João Raimundo é declarado em
prisão preventiva e a acusação é formulada, com o Ministério Público a aceitar
por inteiro, as sugestões da PJ.
CAPÍTULO 6
COMO O PSD ATACOU MARÍLIA
Marília Raimundo foi o segundo alvo
da conspiração que levou João Raimundo à prisão em 15 de Novembro de 1994.
O que aconteceu, depois da prisão
do marido, mostra como quiseram, claramente, intimidá-la, afastá-la e, talvez
mesmo, prendê-la, enrededando-a numa situação idêntica àquela em que o marido
fora envolvido. A única dúvida que permanece é se a ex-governadora civil da
Guarda estava na mira dos conspiradores desde o início ou se foi acrescentada,
quando eles viram que a prisão de João Raimundo não era suficiente para a
silenciar.
Aliás, era óbvio que, quer como
membro do que chegou a ser considerado um «clã», quer como cidadã de referência
na região, Marília, ex-governadora civil, ex-‑líder social-democrata, deputada
na Assembleia da República quer como personalidade respeitada dentro da maioria
governamental, constituiria um perigo se, ficando livre, saísse ilesa do cerco
construído pelas informações e acusações coladas a João Raimundo.
Por outro lado, o facto de a
primeira peça deste puzzle ter sido
lançada para a mesa de jogo em 23 de Novembro, só uma semana depois da prisão
de João, e o modo tão semelhante (e tão apressado...) como o ataque foi
arquitectado fazem, no entanto, pensar que Marília não era uma prioridade.
Talvez os adversários do casal
pensassem que a prisão do presidente do Instituto Politécnico da Guarda fosse
suficiente e que a sua mulher ficaria assustada. Vigiada e acossada, com a
família praticamente destruída, seria natural que qualquer pessoa se fosse
abaixo. Mas não foi isso que aconteceu. Ou talvez achassem que se fora tão
fácil incriminar João, já agora talvez se pudesse fazer o mesmo a Marília. Mas
conheciam mal a força de espírito da mulher que, nascida numa das regiões mais
interiores da Beira, se impusera dentro e fora da sua terra como dirigente
política.
Em qualquer dos casos, mesmo sem
gravações e em corrida contra o tempo, não havia como tentar. E se um primeiro
cadastrado (Ângelo) servira para levar a polícia a prender João, talvez um
segundo servisse para prender Marília... Para quem a pôs também na hit list seria, verdadeiramente, tentar
matar dois coelhos de uma cajadada.
É assim que entra em cena a
personagem José Manuel Amaral, mais conhecido pelo petit nom de «Roupinhas».
Tudo começa — voltemos, mais uma
vez, à indispensável documentação certificada pela PJ — em 23 de Novembro de
1994, uma semana depois da prisão de João Raimundo.
Jacinto Dias, o primeiro nome
sempre citado por Brígida a Ângelo de Trancoso, o homem que invariavelmente
surge com todas as explicações para as várias situações, é, nesse dia, ouvido
mais uma vez pela PJ da Guarda.
Jacinto Dias reafirma, então, ter
sido ameaçado por João Raimundo e explica que isso se devia a ter reservas em
assinar a tal carta dirigida ao Conselho Superior da Magistratura contra Granja
da Fonseca. Dando força à tese da vendetta,
agora consideravelmente alargada, toma a seu cuidado a apresentação da nova
personagem que ia entrar em cena. Ouçamo-lo:
«Deseja ainda transmitir para os
autos que no passado dia 13 do corrente [13 de Novembro], pessoa que neste
momento o depoente não deseja indicar para os autos lhe deu conhecimento de que
estavam em curso preparativos visando a sua eliminação física. Segundo lhe foi
transmitido, estariam envolvidos nos mesmos o presidente da Câmara, Abílio
Curto, a esposa do Dr. João Raimundo, Dra. Marília, e um tal “Roupinhas”,
que o depoente sabe apenas chamar-se Amaral e ser da Guarda, mais concretamente
dos Troucheiros.
«Existiriam, ou continuariam a
existir, contactos entre essas pessoas — reuniões — para melhor gizarem um
plano de concretização desses intentos. Não sabe o depoente se é ou não apenas
e só o único visado, sendo certo que o nome de João Gonçalves, que também está
envolvido nos presentes autos, foi igualmente pronunciado.
«O depoente sobre estes novos
factos fá-los-á chegar ao conhecimento das autoridades, sempre que tenha
elementos novos a transmitir.»
Depois (para que fique tudo — passe
a contradição... — mais claro?), Jacinto Dias avança mais uns metros no
terreno, asseverando «que no passado dia 16, também do corrente mês, o depoente
foi abordado pelo dito “Roupinhas” no Restaurante dos Galegos na Guarda, quando
se encontrava também presente o Dr. Soares Gomes, tendo o primeiro confirmado
ao depoente o que anteriormente lhe tinha sido dado conhecimento no passado dia
13 do corrente, que inclusivamente tinha estado efectivamente na residência de
Abílio Curto, em reunião que ocorreu pelas 3 horas da madrugada, mais
concretamente na garagem da dita residência, com a presença da Marília Raimundo
e que ele, “Roupinhas”, tinha sido contactado no sentido de arranjar alguém que
fosse capaz de “bater” no depoente, se bem que agora já lhe consta que o que se
pretende é a sua “eliminação a qualquer preço”.»
Não se pode ser mais claro, em
matéria de acusações, mas é sempre possível dramatizar:
«A partir desse momento, o depoente
tem tomado mais algumas cautelas, isto porque para sua casa têm sido efectuados
alguns telefonemas esquisitos, ora procurando pelo depoente, ora tentando saber
elementos sobre dados pessoais, desconhecendo o depoente a motivação de tais
pessoas, no entanto e face ao desenvolvimento que os factos narrados vêm
tomando, pensa que poderá existir relação entre eles.»
A figura da ameaça protagonizada
pelo «Roupinhas» é continuada a construir com um novo depoimento, como uma
verdadeira work in progress. Agora, é
a vez de António Soares Gomes, a 13 de Dezembro, com um depoimento
inevitavelmente muito coincidente com o de Jacinto Dias. Ouçamo-lo, em versão
integral:
«Que efectivamente no decorrer do
mês de Novembro, em dia que já não pode precisar, o depoente por motivo de
serviço deslocou-se ao Centro Regional de Segurança Social para tratar de
assuntos profissionais com o Dr. Jacinto Dias. Aí, encontrou também o João
Gonçalves, não sabendo o depoente que motivos ali levaram o dito João,
acreditando também que por razões profissionais.
«Entretanto, aproximou-se a hora do
almoço e o depoente perguntou em que local iriam almoçar. O João Gonçalves
escusou-se, dizendo já ter um compromisso e nessa altura o Dr. Jacinto Dias
informou o depoente que tinha um almoço marcado com uma pessoa e não sabia se
era ou não aconselhável a presença do depoente no mesmo mas, mesmo assim, iria
levantar a questão. Isto porque segundo o Dr. Jacinto, nesse almoço lhe iriam
contar mais algumas coisas relacionadas com o caso Raimundo.
«Quando saíram do gabinete do Dr.
Jacinto Dias, no corredor encontrava-se um guarda prisional que o depoente
apenas conhece pelo nome de Pereira. Recorda-se do Dr. Jacinto ter perguntado
ao Pereira se não havia inconveniente em o depoente os acompanhar ao almoço, tendo
a resposta sido positiva. Deslocaram-se assim para o restaurante A Colmeia,
sito na localidade de Galegos, Guarda.
«Aí, encontraram um indivíduo que o
depoente conhece apenas de vista e que dará pela alcunha de “Roupinhas”.
Sentaram-se numa mesa e então o “Roupinhas” começou por dizer que o que ia
informar era confidencial, pedia a maior descrição e só o fazia pelo facto de
ter consideração pelo Pereira que era muito amigo do Dr. Jacinto Dias.
«No desenvolvimento da conversa,
viria então a informar que pouco tempo antes tinha sido contactado pelo snr.
Abílio Curto, presidente da Câmara da Guarda, que, no seu gabinete na Câmara,
propôs ao “Roupinhas” a comparência numa reunião com uma determinada pessoa,
cujo nome na altura não divulgou. Ficou desde logo marcada uma reunião que
ocorreu na garagem da residência de Abílio Curto, por cerca das 3 horas da
madrugada, isto pouco tempo depois deste primeiro contacto.
«O “Roupinhas” compareceu a tal
encontro e, para seu espanto, encontraria na dita garagem, para além do Abílio
Curto, a Dra. Marília Raimundo. Resultou que a Marília pretendia que o
dito “Roupinhas” contactasse terceiros para dar execução a um plano que deveria
ter como resultado a eliminação, se não está em erro, do Dr. Jacinto Dias e
pelo menos do João Gonçalves. Esta situação terá ocorrido muito pouco tempo
antes da prisão do Dr. João Raimundo.»
Ressalvando, quanto ao então
presidente da Câmara (que, curiosamente, é poupado neste processo), que «o que
é certo é que não sabe se directa ou indirectamente ele tenha também quaisquer
interesses», Soares Gomes diz ainda que «terá também ficado agendada nova
reunião, que o depoente não sabe se ela veio ou não a realizar-se, porque
entretanto o Raimundo foi detido e por outro lado o depoente não recebeu mais
qualquer informação».
As citações, longas, justificam-se
como adiante se verá.
Elas são feitas com um tal grau de
segurança que parece ser impossível pôr em dúvida a credibilidade desta
contraditória testemunha que é José Manuel Amaral. Mas o certo é que, a ser
tudo verdade, ninguém de entre os potenciais visados se preocupou com isso
entre 20 de Dezembro de 2 de Fevereiro.
É nesse dia que o «Roupinhas» é
ouvido pela PJ que, no respectivo auto de inquirição, o descreve como
«industrial, ligado à camionagem e venda de viaturas usadas», fazendo, no
entanto, notar que ele já estivera detido e que se encontrava naquele momento,
em «liberdade definitiva»(!), com 32 anos.
O primeiro depoimento de
«Roupinhas» é muito longo e muito elaborado. Mas, à luz do desfecho deste caso,
tem que ser lido quase na íntegra, acompanhando os homens da PJ que o ouviram e
convidando o leitor a segui-los na sua aparente credulidade, como se fosse
possível acreditar no homem que tinham diante de si.
O «Roupinhas» diz que conhece, «há alguns
anos», Jacinto Dias e Soares Gomes e conta «que, realmente, em Novembro do ano
findo, em data que já não sabe precisar, (...) foi contactado, pessoalmente,
pela Dra. Marília Raimundo, na sua quinta em Troucheiros — Pínzio — Pinhel. Que
a dita senhora se deslocou num Toyota Carina de cor azul e não ia acompanhada».
E continua: «Quando a Dra. Marília
abordou o depoente, disse-lhe que seu marido, João Raimundo, é que lhe tinha
dado a indicação para vir a falar com o depoente. Pretendia que o depoente conseguisse
alguém que fosse capaz de dar cumprimento ao primeiro plano abortado por esta
Polícia, ou seja, pretendia que fosse dado seguimento aquilo que o Ângelo de
Trancoso não levou por diante.»
Depois, pormenoriza: «O que
efectivamente a Dra. Marília pretendia era mandar abater o Ângelo de Trancoso
por a ter traído, o Dr. Granja da Fonseca, o Dr. Jacinto Dias e o João do
Barracão [petit nom de João
Gonçalves], estes dois últimos por a terem traido politicamente, os primeiros
por serem responsáveis pela prisão do marido que considerava estar inocente.
Disse que poria à disposição do depoente 20 ou 30 000 contos se tal fosse
necessário. O depoente respondeu que a questão era séria e que precisava de
tempo para pensar, pois ainda há bem pouco tempo tinha saído de uma prisão e
não queria ver-se envolvido e voltar para o local de onde tinha saído.»
O «Roupinhas» diz que se
«aconselhou» com o «seu amigo Pereira, chefe dos guardas prisionais do
Estabelecimento Prisional da Guarda, pois não sabia como é que haveria de
responder à senhora, pois se o dinheiro lhe dava jeito, por outro não queria
ver-se envolvido».
Declarando-se, por fim,
indisponível para o efeito, embora por outras palavras, José Amaral achou que
devia prevenir «as pessoas das suas relações» (Jacinto Dias e Soares Gomes).
Mas o seu alegado envolvimento com
Marília Raimundo não se quedou por esta brevíssima reflexão sobre as vantagens
e as desvantagens do acto para o qual se dava como solicitado.
Ouçamo-lo e anotemos os pormenores
dramáticos, quase macabros, que rodeiam uma outra peça importante deste puzzle que é a garagem do então
presidente da Câmara Municipal da Guarda, Abílio Curto:
«... Na realidade, esteve marcada
uma reunião com a Dra. Marília numa garagem de uma residência desta cidade, mas
tal reunião não chegou a concretizar-se. Não se recorda de ter falado no nome
do presidente da Câmara Abílio Curto e pensa que poderá ter existido da parte
do Dr. Jacinto Dias e do Dr. Soares Gomes qualquer confusão, provavelmente
resultante da continuação da conversa.
«Recorda-se, também, de ter sido
advertido pela Dra. Marília de que se alguma vez falasse deste assunto o
mandaria liquidar. Esta situação ocorreu quando algum tempo depois, talvez
cerca de 15 a 20 dias após o primeiro contacto, lhe ter dito que não estava
interessado no negócio, ocorrendo essa conversa nas imediações da residência da
Dra. Marília nesta cidade da Guarda.»
Logo a seguir, encontramos algumas
declarações, de carácter muito pessoal, que convém ter presentes, atendendo à
distância de três meses que medeiam entre as primeiras referências a
«Roupinhas» e a sua inquirição pelos sempre presentes subinspector Manuel
Portugal e agente José Casaleiro. Parece um remake
da história que liga Ângelo de Trancoso a Luís Brígida.
«O depoente só presta estas
declarações, por força de ter sido abordado por esta Polícia sobre a matéria e
as não poder negar», afirma Amaral, acrescentando: «Não o fez antes, nem o
faria, pois na realidade tem medo que a Dra. Marília possa, eventualmente,
levar por diante o seu projecto, agora também contra o depoente. Sabe que é
pessoa poderosa e com meios económicos, para facilmente contratar quem quer que
seja para dar seguimento ao que atrás vem referindo». Mesmo estando isolada,
social e politicamente, sob o fogo intenso da Comunicação Social e sob a
vigilância de pessoas que podiam (ou não) ser agentes da polícia?
E Amaral continua: «Nunca esteve na
mente do depoente fazer ou contratar quem quer que seja para levar por diante o
que lhe foi solicitado pela Dra. Marília. Igualmente desconhece por que razão
seu marido, João Raimundo, terá apontado o nome do depoente como sendo pessoa
capaz de aceitar o contrato proposto. Reafirma que o que ela pretendia era
mandar liquidar o Dr. Granja da Fonseca, o Dr. Jacinto Dias e pelo menos o João
do Barracão que o depoente pensa conhecer apenas de vista.
«Não pretende ver-se envolvido
nesta situação, tanto mais que está a lutar para refazer a sua vida pelas
razões que já anteriormente indicou.»
Em 7 de Fevereiro, a PJ ouve o
guarda prisional Armando Pereira. É uma testemunha que afirma ter conhecido o
«Roupinhas», «por força das funções que desempenha» há quase oito anos e ser
amigo de Jacinto Dias «há muito mais tempo e por outras razões».
Divergindo um pouco, em pormenores
do primeiro testemunho de «Roupinhas», Armando Pereira conta que «no decorrer
do mês de Novembro do ano findo e em dia que já não pode precisar o depoente
foi abordado pelo dito Amaral (...) com vista a tentar dar solução a um
problema que o preocupava. É que, segundo lhe contou o José Amaral, este tinha
sido contactado pela Dra. Marília Raimundo, a qual pretendia que ele, Amaral,
arranjasse alguém que fosse capaz de “dar uma tareia” no João do Barracão e
“partir os braços” ao Dr. Jacinto Dias, não se recordando o depoente se o nome
do Dr. Granja da Fonseca também foi ou não nomeado. O Amaral não explicou a
forma como terá sido contactado pela Dra. Marília, esposa do Dr. João
Raimundo, nem em que circunstâncias terá ocorrido tal contacto».
Em 15 de Fevereiro, temos nova
intervenção. Desta vez, é o momento de o juiz Granja da Fonseca entrar em cena
com um testemunho que dir-se-ia ter como objecto exclusivo o reforço da
credibilidade do «Roupinhas».
O juiz conta que, nesse mesmo dia,
fora abordado no seu próprio gabinete do Tribunal Judicial da Guarda «por um
tal Amaral dos Troucheiros», que conhecia bem «por já o ter julgado e condenado
algumas vezes em diversos processos». Parecendo-lhe «estar “apavorado”»,
pedira-‑lhe «por tudo» para ser recebido. E foi-o, naturalmente, tendo contado
ao juiz que «há cerca de três meses a esta data tinha sido contactado (...)
pela Dra. Marília Raimundo (...) num Toyota Carina de cor azul e sozinha».
E o juiz revela, citando Amaral:
«Tal senhora referiu ter-se ali deslocado a pedido do marido, João Raimundo,
pretendendo que ele, Amaral, através dos conhecimentos que tinha da sua estadia
na cadeia e com espanhóis, conseguisse arranjar alguém que matasse o depoente
[Granja da Fonseca], o Ângelo de Trancoso e o Dr. Jacinto Dias, disponibilizando
para isso uma quantia entre os 20 e os 30 mil contos ou superior pois tinha
dinheiro bem para cima dos 300 mil contos.»
Granja da Fonseca garante que
Amaral se sentia «atormentado», revelando que fora ameaçado de morte «se desse
à língua», e acrescenta que o guarda Pereira fora informado, corroborando o
encontro que Jacinto Dias já dissera ter tido lugar num restaurante da Guarda.
Quanto ao facto de já terem passado
três meses desde o alegado rendez-vous com
Marília Raimundo e só nesse mesmo dia ter-se o «Roupinhas» aberto com o juiz,
Granja da Fonseca fornece a seguinte explicação:
«O facto de ter vindo contar tudo
isto ao depoente, devia-se à circunstância de, durante a noite finda, ter sido
perseguido por um carro de cor preta, cuja matrícula não indicou [com] dois
indivíduos que nela se transportavam e que ele diz desconhecer quem seriam.
Para além desta situação, refere a ocorrência de outras anteriores,
designadamente com dois individuos cujo nome não indicou, de Vila Flor, e que
estariam implicados num homicídio ocorrido numa discoteca.»
Granja da Fonseca, decidido,
garante que perante a aflição de Amaral (que teria mesmo dito que «sabia que ia
ser abatido»), mobilizou logo dois agentes e um comissário para lhe garantirem
uma protecção que, estranhamente, não fora antes sentida como necessária. E
conclui:
«São estes os factos que traz aos
autos, não tendo, por agora, outros elementos. Deseja deixar ficar mais uma vez
vincado que leva a sério esta situação, face a tudo quanto já se passou e está
por detrás, segundo pensa, das reais intenções do Dr. João Raimundo e agora,
senão desde sempre, da Dra. Marília Raimundo.»
Como poderiam os esforçados agentes
da PJ, em cuja isenção devem acreditar todas as pessoas de bem, pôr em dúvida a
palavra de um juiz? No entanto, sem que se saiba verdadeiramente porquê, a PJ
até decide ouvir novamente o «Roupinhas», como que procurando uma confirmação
definitiva.
E, em 9 de Março, Amaral insiste,
volta a insistir na história que já contara, num depoimento recheado de pormenores
que se tornam cada vez mais difíceis de serem confirmados, não sem algumas
discrepâncias e com um cheirinho a intriga internacional, que até envolve
espanhóis aparentemente catalogados como assassinos profissionais. A saber:
«...Em data que não sabe precisar,
podendo afirmar que terá sido mais ou menos a meio do mês de Dezembro de 1994,
num dia da semana, seriam talvez cerca de 11 horas da manhã, quando foi
abordado pela Dra. Marília Raimundo, na sua quinta em Troucheiros — Pínzio —
Pinhel.
«Que a dita senhora ali se deslocou
sozinha, fazendo-se transportar num carro de cor azul metalizado, ao que pensa
da marca Toyota, modelo Carina, cuja matrícula não recorda. Estacionou o carro,
na estrada principal e junto ao local onde o depoente anda a construir uns
armazéns. Que a Dra. Marília nunca ali tinha estado e desconhece quem lhe terá
indicado a sua quinta nos Troucheiros. Mais se recorda que ela chegou pouco
depois do declarante e deste facto não tem testemunhas, porque não se
encontrava, no local mais ninguém. Também neste momento não se recorda como é
que ela vinha vestida.
«Que a conversa que mantiveram
ocorreu junto ao carro dela. Reafirma que a Dra. Marília lhe disse que ali se
tinha deslocado a pedido do marido João Raimundo. Que no local atrás indicado a
dita Dra. Marília, pretendeu contratar o depoente, no sentido de que arranjasse
alguém que matasse o Dr. Granja da Fonseca, o Dr. Jacinto Dias, o Dr.,
digo, o João do Barracão, do I.J. [Instituto da Juventude] da Guarda e o Ângelo
de Trancoso. Estava disposta a pagar 30 000 contos, mas se fosse preciso mais
que o depoente pedisse.
«Avisou-o, no entanto e por mais
que uma vez que se “desse com a língua nos dentes” o mandaria liquidar.
Recorda-se que foi também nessa altura que ela Dra. Marília chegou a exibir
fotografias da quinta onde mora o Dr. Jacinto Dias. Mais se recorda que foi a
Dra. Marília quem disse ao depoente que tinha conhecimento que o depoente tinha
contacto com espanhóis que poderiam fazer o serviço.
«O depoente não deu qualquer resposta,
no imediato, pedindo algum tempo para pensar. O que aconteceu é que algum tempo
depois a Dra. Marília telefonou ao depoente, marcando uma reunião para saber a
resposta ao seu pedido.»
É assim que chegamos à garagem do
então presidente da Câmara Municipal da Guarda:
«Quando ela lhe telefonou»,
continua «Roupinhas», «ao que crê ainda no mês de Dezembro do ano findo, marcou
uma reunião que ocorreu por cerca das três da manhã, na garagem da residência
do Presidente da Câmara Abílio Curto. Que nesta reunião só esteve presente o
depoente e a Dra. Marília, tendo sido ela quem abriu a porta da garagem, não
sabendo o depoente onde é que ela arranjou a chave.
«Nesta altura da reunião, a Dra.
Marília perguntou ao depoente qual era a sua resposta, tendo o depoente pedido
mais uns dias para pensar no assunto. Também não se recorda como é que ela
estava vestida, pensando que trajaria um casaco acastanhado em cabedal mas não
pode afirmar tal por não estar seguro.»
A seguir, o cenário muda, num
contraste talvez excessivo entre uma garagem de madrugada e a porta de uma casa
de família à hora do jantar: «Em meados de Janeiro do ano em curso, também não
pode precisar o dia, o depoente ligou-lhe, telefonicamente, e combinaram
encontrar-se junto à porta da residência da Dra. Marília Raimundo.
«Para esse local, o depoente
deslocou-se no seu Honda Prelude de cor creme. Seriam cerca das 20 horas, ela
desceu as escadas da residência e junto às mesmas o depoente disse-lhe que não
estava interessado no contrato. Apesar de lhe fazer muita falta o dinheiro, não
estava interessado, tinha saído há pouco tempo da cadeia e queria reorganizar a
sua vida. A Dra. Marília Raimundo aceitou mas voltou a dizer ao depoente que se
alguma vez falasse deste assunto a alguém o mandaria liquidar.»
Tinham, a acreditarmos nas palavras
do juiz, de Jacinto Dias e do guarda prisional, passado três meses. E o
«Roupinhas» não fora vítima de ameaça ou perseguição que se visse.
O certo é que Marília Raimundo
acaba por ser declarada arguida, já em 7 de Março, sendo ouvida, como tal, a 10
de Março, em circunstâncias um tanto bizarras, provocadas pela iniciativa da PJ
de comunicar directamente com Marília Raimundo. Porque a sua condição de
deputada da República obrigava a que essa diligência fosse feita através do Ministério
da Justiça para a presidência da Assembleia da República. O equívoco,
chamemos-lhe assim, provoca uma verdadeira borrasca política em Lisboa, como
mais tarde veremos.
Mas regressemos a 10 de Março
quando, perante os polícias, Marília Raimundo nega tudo. Veementemente.
Nega conhecer José Manuel Amaral e
tê-lo contactado «para liquidar fosse quem fosse» e esclarece que, sim, tinha
um Toyota Carina. Mas que nunca o tinha utilizado «e muito menos nos meses de
Novembro e Dezembro do ano passado, na zona da quinta dos Troucheiros — Pínzio
— Pinhel, zona, aliás, que desconhece».
A seguir, afirma que o facto de ter
tido um acidente de viação oito anos antes e por ter dado uma queda no mês de
Novembro de 1994 tinha lesões no pé esquerdo, «lesões essas que lhe não
permitem fazer percursos longos em condução automobilística, pelo que os
percursos que faz, utilizando e conduzindo um veículo automóvel, são curtos e
se limitam, praticamente, a andar dentro da cidade».
Nega, também, ter-se encontrado com
o «Roupinhas» na garagem do presidente da Câmara de madrugada. Com quem,
acrescenta, mantinha relações institucionais mas sem que existissem «quaisquer
laços de amizade ou intimidade». Quanto à garagem, conhecia a casa, «já que
quando passa pela via pública a vislumbra, não sabendo porém a porta de entrada
da referida casa, já que nunca nela entrou».
A acusação de ter oferecido
dinheiro a Amaral é também rejeitada, bem como o facto de alguma vez ter
afirmado que considerara uma traição a oposição que Jacinto Dias, Soares Gomes
e João Gonçalves lhe haviam feito no PSD local. Quanto a Granja da Fonseca, não
alimentava animosidade contra ele apesar de ter ditado a sentença contra João
Raimundo. E, recordava, o processo fora objecto de recurso. Quanto a Ângelo de
Trancoso, não o conhecia e quanto a Brígida nunca tivera qualquer conversa com
ele sobre os alegados «traidores».
A seguir, a defesa pede uma
acareação com Amaral, que se encontrava nas instalações da Judiciária, e com
Abílio Curto. A Judiciária aceita o pedido.
É um volte-face e o princípio do
fim da credibilidade do «Roupinhas»... que será, como dizia recear,
«abatido»... mas no sentido figurado do termo e não por Marília Raimundo — pelo
Tribunal Judicial da Comarca da Guarda em Outubro de 1997, ou seja, dois anos e
sete meses depois da tentativa feita para incriminar Marília.
Porém, nesse dia 10 de Março, no
entanto, ainda Amaral garantia que era tudo verdade.
A acareação é narrada pelo agente
Casaleiro e o auto regista as seguintes presenças: Marília Raimundo, Amaral,
João Marques Mendes Nabais (procurador da República), Amália Rolão Preto
(delegada do Procurador da República), Castanheira Neves e Helena Lages
(advogados de Marília Raimundo) e Manuel Portugal.
«Roupinhas», o primeiro a
explicar-se, reafirma tudo: o encontro na garagem de Abílio Curto «pelas 3
horas da manhã de dia que não pode precisar, mas que e se não está enganado, ou
no decurso do mês de Janeiro de 1995 ou ainda no mês de Dezembro de 1994, antes
do dia de Natal».
Amaral fornece larga cópia de
pormenores: que a porta da garagem é do tipo basculante, que ele entrou por
«uma pequena porta, denominada porta de serviço, incrustada no portão
basculante», que Marília Raimundo é que acendeu a luz «através de interruptor
que não se lembra onde o mesmo está situado, bem como não sabe de onde procedia
a luz da dita garagem», onde «poderão caber três veículos automóveis e, se não
está em erro, no interior da mesma apenas se encontrava um Volvo que segundo
pensa é de modelo recente e, salvo erro, também uma moto das grandes».
E ainda se refere a uma eventual
presença canina, pormenor que não é menos importante: «Que não deu pela
presença de quaisquer pessoas na dita vivenda bem como pela presença de
qualquer animal de raça canina.»
O encontro nos Troucheiros foi, de
novo, objecto de insistência por parte de Amaral bem como a garantia de que
conhecia Marília Raimundo por uma visita efectuada, quando a então deputada era
governadora civil, ao Estabelecimento Prisional da Guarda, onde ele efectuava
uma das suas estadias.
Marília Raimundo só aceita esta
possibilidade mas num quadro muito preciso: admitiu «que o tenha cumprimentado,
como, aliás, cumprimentava todos os reclusos». Quanto ao encontro na garagem,
Marília Raimundo declarou-se, naturalmente, «revoltada» e negou, de forma
categórica:
«Que era impensável para si sair às
3 horas da mnhã para o encontro na casa de uma pessoa com quem não tem relações
de amizade, sendo certo que pela data que o segundo acareado [«Roupinhas»]
refere, já o seu marido se encontrava detido e se a vissem passar àquela hora,
sozinha no seu veículo automóvel que toda a gente conhece e deslocando-se para
o sítio onde o segundo acareado diz que foi o encontro, seria seguida por muita
gente dentro da cidade da Guarda, facto esse que seria muito comentado. Que
quanto aos 20 ou 30 mil contos que o segundo acareado diz que a 1.ª acareada
lhe ofereceu, é impensável que dispusesse dessa quantia à mão.»
Breve, a explicação é muito
racional. É possível pensar que Amaral (ou alguém por ele...) não tenha
considerado que seria pouco plausível — e algo perigosa — uma sortida desse
género por parte de Marília Raimundo, que estava debaixo de todas as atenções.
Nem, sequer, possível se, não considerando a questão política, se pensar no
quadro social que envolveria uma visita a horas impróprias de uma mulher
casada, com o marido detido, a casa de outro homem. A pressa — em encontrar
algo para incriminar Marília — terá sido má conselheira?
Abílio Curto, o então presidente da
Câmara da Guarda, é ouvido a 14 de Março. Esclarece o tipo de relações que
tinha com Marília e João Raimundo, institucionais com a primeira e difíceis
(mas sem nunca terem sido cortadas) com o segundo, «dado o facto de terem sido
estudantes na mesma altura».
E mais esclarece, pela pena de
Casaleiro: «Que pelas razões atrás apontadas nunca o depoente poderia ter
emprestado a chave da sua garagem ou muito menos ceder a sua residência para
qualquer tipo de encontro entre a Dra. Marília e outra pessoa qualquer que não
fosse da sua inteira confiança. Que o depoente não tem relações com o José
Manuel Amaral, muito embora admita que o possa conhecer apenas de vista.
«Que na sua garagem nunca teve
estacionado o seu Volvo mas sim o Toyota branco de seu filho.
«Que o portão da entrada da sua
residência é em duas folhas e na verdade o chão de acesso da entrada principal
até à garagem da residência é cimentado. Que tem alguns cães ficando o canil
dos mesmos a cerca de três metros da porta da garagem. [Os cães estavam
ausentes do depoimento de Amaral, sendo de presumir que dessem sinal da sua
presença perante uma entrada assim tão inesperada de um desconhecido...]
«Que a porta da garagem é do tipo
basculante, mas não tem qualquer porta de serviço inscrustrada.
«Mais uma vez reafirma achar
impossível que alguma reunião tenha ocorrido na garagem da sua residência e
muito menos com a presença da Dra. Marília Raimundo, pessoa que nunca pisou os
seus terrenos. Relativamente ao canil, esclarece que em Novembro ou Dezembro do
ano findo, ele não se encontrava no local onde hoje está situado mas sim ao
fundo da rampa de acesso à garagem.»
Não se adiantam pormenores sobre o
número e a raça dos cães nem se eles poderiam ter ladrado — ou feito sentir a
sua presença de outro modo — a um visitante como o «Roupinhas» mas as dúvidas
são tantas que a PJ até fotografa alguns aspectos da garagem e inclui-os no
processo.
Será quase desnecessário dizer que
as fotografias desmentem «Roupinhas» que, ouvido em 16 de Março, ainda insiste
no que antes dissera aos agentes da Judiciária. Mas é uma insistência que vai
cair em saco roto, quando, em 3 de Abril, o agente J. Casaleiro sacode
«Roupinhas».
Num ponto de situação («Historial
da ocorrência», com data de 3 de Abril) em oito páginas, o agente Casaleiro
dedica duas páginas a José Manuel Amaral.
Recorda que este acusara Marília
Raimundo de o ter contactado para que «eliminasse» Granja da Fonseca, Jacinto
Dias, João Manuel Gonçalves e Ângelo de Trancoso. Recorda, também, pormenores
da acusação, a audição de Marília Raimundo e a acareação. Mas não o modo como
«Roupinhas» é introduzido no processo nem que o fez. E lá ressalva:
«Porém, os pormenores
acrescentados, respeitantes aos sinais identificativos do sítio onde ocorreu o
alegado segundo encontro (garagem do sr. Abílio Curto, presidente da Câmara)
não coincidiram com a realidade que esta Polícia constatou no local.
«Além disso, o sr. Abílio Curto,
inquirido de seguida, negou também firmemente a ocorrência desse encontro em
sua casa.
«O Amaral afirmou não existirem
quaisquer testemunhos dos encontros que, não obstante, em posterior inquirição
veio a reafirmar terem ocorrido.»
E conclui, como que insatisfeito:
«Assim, e porque não se vislumbra possibilidade de efectuar qualquer outra
diligência susceptível de esclarecer a questão, parece-nos dever concluir-se
pela não suficiente indiciação da Dra. Marília Raimundo na prática dos factos
de que o Amaral deu notícia.»
É de registar que o cadastro de
Amaral (tal como o de Ângelo de Trancoso) não parece constituir elemento
impeditivo da sua credibilidade...
Assim, em 25 de Abril (na mesma
data em que sai a acusação contra João Raimundo), o Tribunal Judicial da
Covilhã informa Marília Raimundo de que o Ministério Público se abstivera de
acusá-la pelo crime de terrorismo, ordenando o arquivamento do processo.
«Roupinhas» é que não é esquecido e
o processo, por difamação, que Marília Raimundo lhe move ajudará a perceber
melhor o puzzle.
O processo arrasta-se durante os
anos de 1996 e de 1997, com Amaral a ser chamado diversas vezes a tribunal. Mas
só acaba por comparecer, e já sob custódia da GNR de Pínzios, em Outubro de
1997, no Tribunal Judicial da Guarda. Ou seja, três anos depois dos factos que
garantiu terem acontecido.
A sentença do Tribunal Judicial da
Guarda, datada de 1997, é claríssima.
O Tribunal declara como provado que
Amaral «quis e soube imputar à assistente [Marília Raimundo] factos que sabia
não corresponderem à realidade, consubstanciadores da prática de um crime, com
o fim de ver instaurado procedimento criminal contra aquela, objectivo que
logrou alcançar». E declara-o culpado de crime de denúncia caluniosa.
Esta sentença representa uma das
mais significativas machadadas na tese da «lista negra». Registemos na íntegra
o que disse, no julgamento, o advogado de «Roupinhas» tal como se encontra na
respectiva certidão:
«O arguido [José Manuel Amaral]
reconhece serem totalmente falsos e inverídicos os factos de que acusou a
assistente [Marília Raimundo], os quais anunciou por inspiração de terceiros
por motivos políticos.
«Por saber que a assistente é
pessoa de bem, idónea, séria e bem formada, pede-lhe desculpa pelos incómodos
que lamentavelmente causou com a imputação de falsidades que bem sabia não
corresponderem à verdade, embora por inspiração de militantes do PSD, sendo
porém certo que o arguido pessoalmente nunca imaginou nem quis que contra a
assistente fosse desencadeado qualquer procedimento criminal.»
Condenado a prisão, com pena
suspensa, «Roupinhas» vê-lhe, apesar de tudo, perdoada pela própria Marília
Raimundo a indemnização que lhe exigia.
O «Roupinhas» não esclareceu,
publicamente, quem o instigara e o Ministério Público pediu, expressamente, que
tal fosse averiguado. Até hoje, nunca se soube... Mas é irresistível ver o dedo
de Amaral, depois de tantas acusações que envolveram Jacinto Dias, Granja da
Fonseca, Soares Gomes e João Gonçalves, a apontar para este grupo de quatro
homens que constituíam, afinal, a «lista negra», o tal objecto que levara João
Raimundo à prisão pela mão de outro cadastrado e que o mantinha preso, contra
todas as tentativas de lhe ser conseguida a libertação até ao julgamento.
Os ecos da explosiva revelação do
«Roupinhas» fizeram-se ouvir, de modo ensurdecedor, na Guarda. Mas, já na
imprensa de expansão nacional, a contrastar com os grandes títulos de outrora,
apenas A Capital, então dirigida pela
jornalista Helena Sanches Osório, lhe deu o devido realce com um título de
primeira página que terá inquietado muita gente: «“Vendetta” política revelada
em Tribunal — “Gang” do PSD atacou Marília».
Apesar da fragilidade aparente do
«episódio Roupinhas», e de ele se ter desenvolvido já com João Raimundo preso,
há aqui matéria suficiente para nos interrogarmos: e se aquilo que ficou
conhecido por «caso da “lista negra”» foi concebido para atingir Marília, sendo
dirigido contra João só por causa dos processos desencadeados por Bernardo
Duarte?
Este caso, que demonstra a
fragilidade da tese da «lista negra» e cujo desfecho se verifica dois anos
depois do julgamento em que João Raimundo foi condenado (apenas por ofensas
corporais), deixa também um rasto incómodo para o PSD, que convém recordar.
Ainda em 1995, quando, na Guarda, a
PJ — acreditando em «Roupinhas» — se mostra interessada em ouvir Marília, o
agente Casaleiro faz um ofício (em 17 de Fevereiro de 1995) dirigido ao seu
superior hierárquico Portugal a indiciar a mulher de João Raimundo como «co-‑autora
do ilícito penal».
Da Guarda sai, com esta informação,
a sugestão de que a deputada deve ser ouvida como arguida. Euclides Dâmaso, à
data director-geral adjunto da PJ de Coimbra, despacha tudo para o
director-geral da PJ em Lisboa, Mário Mendes, a 20 de Fevereiro, defendendo que
se pondere a «conveniência» de participar essa decisão ao presidente da
Assembleia da República, segundo conta O
Independente em 10 de Março.
E ainda Mário Mendes não tomara uma
decisão, já a Rádio Altitude, na Guarda, o Público
(a 28 de Fevereiro) e o jornal regional Terras
da Beira (em 2 de Março) noticiavam que o director-geral da PJ comunicara
com a Assembleia da República, o que aquele não fez senão em 2 de Março... O
então ministro da Justiça, Laborinho Lúcio, não terá gostado, e a
Procuradoria-Geral da República também não.
Já no próprio Parlamento, onde
Marília é notificada directamente, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias ocupa-se do assunto, a pedido do presidente da
Assembleia, Barbosa de Melo.
O parecer da Comissão é redigido
pelo deputado Fernando Amaral (PSD) e apresenta-se muito crítico para com a
acção da PJ, observando que o pedido de audiência da deputada Marília Raimundo
«é da autoria de um agente da PJ e está na base das diligências posteriores do
inquérito [tendo dado lugar] a todas as insinuações insidiosas, humilhantes e
gravosas de que os meios de comunicação se fizeram eco, em manifesto prejuízo
da dignidade e consideração que lhe são devidas».
No mesmo parecer, a Comissão
comenta ainda que «um simples agente da PJ, ainda que competente, sabedor e
honesto, não deveria assumir a responsabilidade legal de definir o tipo de
crime e da idoneidade da denúncia que dá causa à abertura do inquérito,
respeitante a um titular de um órgão de soberania».
O parecer foi aprovado em 18 de
Maio, ficando a pairar algumas dúvidas sobre o que pensariam alguns deputados
do próprio partido de Marília Raimundo...
CAPÍTULO 7
O DINHEIRO E AS SAIAS
Vimos como João Raimundo foi preso
e incriminado e como Marília Raimundo esteve prestes a sê-lo, com base nas
declarações dos homens da «lista negra», nas sugestões de Ângelo a Brígida e
nas declarações falsas do «Roupinhas».
Os homens da PJ, José Casaleiro e
Manuel Portugal, levaram por diante o seu inquérito, construíram as suas
teorias (tendo que desistir da que se baseara nas declarações do «Roupinhas») e
fizeram as suas acusações. Mas, a avaliar pelo registo escrito do processo,
houve dois factores essenciais que foram considerados secundários: o dinheiro
que teria sido dado por Brígida a Ângelo e a mulher que estaria na origem do
conflito entre Brígida e Jacinto Dias. Estranhamente, as averiguações em torno
destes pontos param (ou são paradas) a certa altura. Porque não havia nada?
Porque isso não era relevante? Porque não encaixavam bem no que já tinha sido
delineado?
O dinheiro sempre foi um enigma. E
podemos interrogar-nos se ele existiria. Até porque Brígida, que contando com o
salário da mulher teria um rendimento mensal de cerca de 100 contos, de acordo
com os documentos constantes do processo, não disporia facilmente dessa soma.
Em 26 de Janeiro de 1995, num dos
relatórios intercalares dirigidos pelo agente Casaleiro ao subinspector
Portugal, escreve aquele: «Ainda no âmbito da investigação em curso estão a ser
investigadas as contas pessoais dos dois arguidos dos presentes autos [Brígida
e João Raimundo] e bem assim das instituições onde desempenhavam funções,
visando descortinar a eventual saída dos 1 000 contos de alguma delas. Porém,
até ao momento, ainda não se obtiveram resultados positivos.»
Qual seria, então, a origem do
dinheiro, se existia? Foi mesmo João Raimundo quem lhos deu? Ou Brígida arranjou-os
de outra forma?
Com a PJ ainda a demandar contas e
bancos, em Janeiro de 1995, Brígida ensaia, muito desastradamente, uma primeira
explicação para a proveniência do dinheiro:
«... Estava o depoente em Lisboa,
na Avenida 5 de Outubro, onde está instalado o Ministério da Educação, quando
se abeirou de si um indivíduo que não conhece que lhe perguntou se era o
motorista do Dr. João Raimundo. Perante a resposta positiva do depoente, tal
individuo entregou-lhe um embrulho, que logo o depoente se apercebeu tratar-se
de dinheiro, dizendo-lhe tal pessoa que o mesmo se destinava ao pagamento de
“uma sova” que deveria ser dada ao Dr. Jacinto Dias, não dizendo mais nada e
desaparecendo.
«Esclarece que só viu tal indivíduo
essa única vez, não sabe se ele era ou não funcionário do Ministério, nem as
razões que determinavam que a vítima fosse o Dr. Jacinto Dias. Que se tal
indivíduo lhe for presente, talvez o possa vir a reconhecer. No entanto, pode
afirmar que se tratava de pessoa para idade entre os 35 e os 40 anos, bem
constituído, cabelo escuro, liso, com risco ao meio, e vestido normalmente.»
A descrição do indivíduo ajusta-se
ao português vulgar, com excepção estatística do risco ao meio. O gesto é que
não. E, além disso, contraria tudo aquilo que Brígida dissera a Ângelo, pelo
menos nas primeiras conversas. Por outro lado, ou o assunto era demasiado
privado ou a cena nunca aconteceu... porque, no regresso à Guarda, conduzindo
João Raimundo, Brígida já não toca no assunto.
Não há, portanto, registo nem
memória de isto ter efectivamente acontecido e é legítimo pensar que isso, de
facto, nunca aconteceu e que essa explicação, algo naif, terá deitado a perder a credibilidade da verdadeira
explicação.
Porque só em Junho, finalmente,
oito meses depois da prisão, é que viremos a saber tudo. Junho é, aliás, para
Brígida, o mês decisivo, quer para a explicação da origem do dinheiro quer para
o seu conflito com Jacinto Dias.
No dia 5 desse mês, realiza-se um
auto de inquirição — muito esclarecedor — no Tribunal Judicial da Covilhã, com
Brígida, o seu advogado e o advogado de João Raimundo.
Atenhamo-nos ao texto, onde Brígida
surge na terceira pessoa:
«Trabalhou na Firma Morgado e
Raimundo Lda, da qual era sócio o Dr. Raimundo na sequência de um pedido que
fez ao padre Urbelino dos Santos Martins Pinto para lhe arranjar emprego, o
qual terá por sua vez falado com o Dr. João Raimundo, sendo por esta via que o
arguido veio a trabalhar na referida sociedade.
«Quando se dirigia ao arguido
Raimundo costumava tratá-lo por “Sr. Doutor” ou “Sr. Presidente”, admitindo,
porém, que em conversas com terceiros, nomeadamente com colegas, tratasse o
arguido Raimundo por “Chefe”. Era amigo do arguido Raimundo e procurou sempre
servi-lo com lealdade. Não se considera como tendo sido “um fiel servidor” do
arguido Raimundo se se quiser entender com esta expressão que estava disposto a
fazer qualquer coisa que aquele lhe pedisse.
«De facto, o arguido procurou
desempenhar as funções que lhe eram confiadas pelo arguido Raimundo o melhor
que soubesse e que fosse capaz desde que tais funções não lhe causassem
prejuizo. Que o arguido Raimundo nunca comentou directamente para o depoente o
facto de a sua mulher ter perdido as eleições para a Comissão Política
Distrital do PSD. No entanto, em várias conversações que ouviu do arguido
Raimundo para terceiros, nomeadamente colegas, aquele declarou que se sentia
traído, digo aquele fazia comentários (exemplo: “tanto bem que lhes fiz...”),
referindo-se a Jacinto Dias, Soares Gomes e João Gonçalves, donde o arguido
extraiu a conclusão de que o arguido Raimundo se sentia traído por estas
pessoas.»
Registe-se que Brígida interpreta o
que ouviu dizer e mostra que se limitara a extrair conclusões.
É neste momento que surge uma
primeira explicação, aparentemente mais plausível, para o dinheiro: «Quanto à
quantia de um milhão de escudos que o arguido deu a Ângelo de Trancoso, tem a
esclarecer o seguinte: nos princípios do Verão do ano passado e porque
pretendia fazer obras em sua casa (pintura do interior e exterior) e não
tivesse dinheiro, o arguido pediu a seu pai Luciano Augusto Rogado, residente
em Marialva — Mêda, a quantia de um milhão de escudos destinada à efectivação
de tais obras.»
Ora esse dinheiro nunca foi para as
obras. Ouçamos Brígida:
«Tal dinheiro, porém, veio o
arguido a entregar ao Ângelo de Trancoso a quem pediu e este acedeu em dar uma
sova ao Dr. Jacinto Dias. Fê-lo porque o referido Jacinto Dias andava com
uma assistente social, que prestava serviço na Casa do Povo de Foz Côa e com a
qual ele vinha mantendo relações sexuais sendo certo que também o arguido vinha
mantendo tais relações com a referida Manuela.
«Esse facto provocou ciúmes e mal
estar entre o arguido e o Dr. Jacinto Dias (que entretanto ia comentando
com terceiros que havia de “partir as trombas” ao ora arguido), razão pela qual
o arguido resolveu contratar o Ângelo de Trancoso para lhe dar uma sova.
«Aliás, o mal estar entre o arguido
e o referido Jacinto Dias vinha já de algum tempo antes, quando o arguido era
presidente do Clube Desportivo e Recreativo de Solidariedade Social de Marialva
e o Dr. Jacinto Dias era presidente do Centro Regional de Segurança Social da
Guarda por este só haver entregue no ano de 1994 a quantia de 500 000$00
aquele clube, quando o PIDDAC previa que lhe fosse entregue a quantia de
1 000 000$00.»
E por que é que a explicação,
indispensável, demorou tanto tempo? «O arguido não prestou antes esta
declaração por saber que o seu pai e os irmãos dificilmente lhe perdoariam
(esclarece agora que já perdoaram) o facto de ter utilizado o dinheiro que o
pai lhe deu com o fim suprareferido. À pergunta feita, esclarece que ao dar-lhe
a referida quantia, o pai lhe terá pedido para não dizer nada aos irmãos em
virtude de não poder dar tal quantia a todos, digo em virtude de não estar
disposto a dar igual quantia a todos.»
A explicação parece, finalmente,
lógica e capaz de abrir outros horizontes à investigação policial e ao
esclarecimento da verdade.
Vejamos. Há quem identifique a
origem do dinheiro, há um motivo — suficientemente forte no cenário das
violentas paixões portuguesas — para Brígida querer atacar Jacinto Dias. E
tanto isto parecia plausível, apesar de poder fazer perigar a tese da «lista
negra», que a PJ faz três coisas: identifica a citada Manuela — que será ouvida,
na cena mais picaresca do processo —, investiga o pai de Brígida e ouve-o,
depois, em inquirição.
Comecemos pelo «relato de
diligência externa», datado de 9 de Junho, feito na Guarda e em Marialva e
assinado não por José Casaleiro mas por um terceiro homem, o agente João
Oliveira:
«Com o objectivo de se recolherem
elementos tendentes a determinar com um grau de exactidão o mais acentuado
possível, quanto à capacidade económica do pai de Luís Rogado, para dispor de
um milhão de escudos, viemos a diligenciar nesse sentido. Apurou-se que, pese
embora ele não seja um “homem rico”, foi emigrante durante largos anos em
França, donde regressou há cerca de três, recebendo uma pensão daquele país.
Vive desafogadamente em termos económicos, pelo que teria potencial económico
para dispor daquela verba e dá-la ao filho.»
Em 13 de Junho, o pai de Luís
Brígida, Luciano Augusto Rogado, residente em Marialva, de onde é natural,
confirma tudo perante o mesmo João Oliveira:
«Que é de facto verdade ter dado ao
seu filho Luís Rogado a quantia de um milhão de escudos, que ele lhe pediu para
o arranjo da casa — pinturas interiores e exteriores — e para comprar umas
mobílias.
«Sobre a data e circunstâncias em
que ele lhe efectuou o pedido, referiu o seguinte:
«Que não consegue precisar com
rigor a data em que o seu filho o procurou com essa intenção mas tem a ideia
que foi “após a Páscoa do ano passado”, talvez «uns oito ou quinze dias
depois”.
«Ele veio a sua casa num domingo.
Quase todos os fins-de-semana ele vinha com a mulher e os filhos a sua casa.
Chegavam no sábado, normalmente por volta do almoço, e ficavam até domingo à
tarde. Ele perguntou-lhe se lhe podia dar mil contos para fazer pinturas em
casa e comprar umas mobílias. Aliás, por se recordar melhor, refere que em primeiro
lugar ele “pediu” o dinheiro à mãe e esta falou consigo sobre isso. Logo de
seguida o Luís falou consigo e pediu-lhe. De pronto, ouviu o pedido feito e
entregou-lhe aquela quantia em notas, que possuía guardada em casa. Já não se
recorda de em que que parte da casa é que o seu filho falou consigo. De igual
modo não consegue recordar-se se as notas eram todas do mesmo valor nem qual o
valor das notas que estavam em maioria. Refere que ninguém assistiu ao pedido
que o Luís lhe fez.»
O depoimento de Luciano não é
assinado por o depoente não saber assinar. Junta-se ao processo... e aí fica.
Morto e enterrado. Ninguém volta a falar no assunto. De tal modo que, no
julgamento, se dá por provada a existência do dinheiro... mas não a sua origem
e, sendo os mil contos declarados nessa altura perdidos a favor do Estado, a
posterior anulação do processo (decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça)
acaba por implicar em teoria a devolução do dinheiro a Ângelo que,
verdadeiramente, nunca se percebe se o tem... ou não.
Voltemos agora um pouco atrás e,
bem acompanhados pela PJ, cherchons la
femme.
Brígida nunca deixara de manter —
no decurso dos interrogatórios a que continuava sujeito e devidamente apoiado
pelas gravações — que fora ele próprio, por sua iniciativa, a sugerir, em
diversos círculos, a contratação de alguém, para dar uma sova em Jacinto Dias,
em primeiro lugar. Não contesta a matéria das gravações mas afasta qualquer
ideia de que poderia estar a agir a mando do ex-‑presidente do Instituto
Politécnico. Jacinto Dias aparece sempre como o único e exclusivo objecto da
sua ira.
A explicação temo-la pela mão do
mesmo João Oliveira, que investigara a situação económica do pai de Brígida, e
que descreve, do seguinte modo, a diligência externa feita para identificar e
localizar a putativa amante de Brígida e de Jacinto Dias, no dia 8 de Junho:
«Com vista à identificação e
localização da “Manuela”, referenciada pelo Luís Brígida, efectuámos alguns
contactos com várias pessoas, tendo logrado obter a informação de que aquela se
chama Maria Manuela Pereira de Sousa Vidal e presta serviço como assistente
social no Serviço Sub-Regional de Segurança Social da Guarda, residindo na Rua
do Povo, Bloco 3, r/c Dto., Guarda.»
Exactamente no mesmo dia, Manuela,
então com 32 anos e no estado civil de casada, é ouvida na PJ, registando o
auto de inquirição o depoimento que segue:
«... Conhece o arguido Luís Manuel
Brígida Rogado, desde há largos anos, porquanto andaram no Liceu desta cidade
ao mesmo tempo.
«Não obstante esse conhecimento de
longa data, não há nem nunca houve qualquer amizade entre ambos. Conheciam-se,
cumprimentavam-se e nada mais do que isso. Para além disso, porque é militante
do PSD, vai às reuniões do partido, juntamente com o seu marido. Aconteceu
encontrá-lo algumas vezes, muito poucas, nessas reuniões.
«Perguntada sobre se alguma vez
teve algum tipo de relacionamento emocional ou sexual com o Luís Rogado,
respondeu categoricamente que não. Que o relacionamento com ele sempre se
reduziu e esgotou, como já referiu, num mero e banal conhecimento com
cumprimentos circunstanciais.
«De igual modo e a nova pergunta,
respondeu que também nunca se relacionou emotiva ou sexualmente com o Dr.
Jacinto Dias. Conhece este senhor também há muitos anos, dado que ele era amigo
do seu pai. Para além disso, é o director dos serviços onde presta trabalho.
Existem entre ambos meras relações de amizade, naturalmente de trabalho.
«A inquirida refere que não
consegue minimamente lobrigar que razões terão determinado o Luís Rogado a
proferir as afirmações que fez. São completamente destituídas de verdade e
fundamento. Sente-se chocada com o afirmado, o seu bom nome foi de forma baixa,
fácil e gratuita posto em causa por ele, reservando-se desde já o direito de,
oportunamente, o accionar criminalmente por esse facto.»
O que não aconteceu.
Em 12 de Julho, no Tribunal
Judicial da Covilhã, realiza-se uma acareação em que participam Brígida e
Manuela perante o juiz, a delegada do Ministério Público, Maria Amália Rolão
Preto, e os advogados de Brígida e de João Raimundo, respectivamente Rodrigo
Santiago e Nuno Godinho de Matos. Afastado, desde logo, da acareação, João
Raimundo ainda pede para que ela seja repetida mas o pedido é-lhe negado.
Nas primeiras impressões, nessa
reunião, Luís Rogado e Manuela limitam-se a repetir o que já tinham dito: ele,
que obtivera o dinheiro do pai para atacar Jacinto Dias por causa dela, ela que
não tinha nada a ver com ele.
Talvez por isso, é Brígida a
avançar, jogando à defesa, com larga cópia de pormenores para tentar mostrar
que tinha razão:
«... Em fins de Junho ou Julho de
1994, e após jantar com a depoente Manuela, em Moncorvo, dirigiram-se a um pub, em Vila Nova de Foz Côa, de onde
saíram para casa, digo donde saíram e, deram um passeio, no fim do qual se
deslocaram a casa da ora depoente, umas águas furtadas em Foz Côa, com três
divisões, um quarto, uma casa de banho e uma cozinha ou hall, onde manteve relações sexuais com a depoente.
«Aliás, tais relações sexuais
haviam já sido mantidas entre o arguido e a depoente, cerca de duas ou três
vezes, em locais distintos (no carro, no campo...), acrescentando o arguido que
as mesmas teriam ocorrido na estrada que liga Foz Côa a Almendra.
«Confrontada a depoente com as
afirmações do arguido, supra expostas, pela mesma foi dito que nega ter mantido
relações sexuais com o arguido e, designadamente, na casa, no carro, ou no
campo. Porém, nessa altura, isto é, em Junho ou Julho de 1994, vivia em Foz Côa
numas águas furtadas sendo certo que a casa tinha uma divisão ampla ou seja, a
sala que também servia de quarto, uma cozinha, uma dispensa e uma casa de
banho.
«Perguntada qual a razão da
aparente coincidência entre a composição da casa, quer na sua versão quer na
versão do arguido, por ela foi dito que a partir de Julho de 1994, data em que
veio trabalhar para a Guarda até ao final do mesmo mês a referida casa esteve
vaga, pretendendo o respectivo dono alugá-la pelo que, admite, que o arguido
Rogado possa tê-la visto ou em qualquer outra altura, sem que a depoente tenha
tido conhecimento. Esclarece que enquanto viveu na referida casa não tem
conhecimento que o arguido Rogado aí tenha entrado em quaisquer circunstâncias.
Nega ter tido, igualmente, quaisquer relações sexuais, ou de namoro, com o Dr.
Jacinto Dias.»
Mas Brígida contra-ataca, com a
desenvoltura de quem já percebeu que não vale a pena ser-se discreto:
«O arguido Luís Rogado deseja
acrescentar que caso seja necessário pode fornecer alguns sinais que a
depoente, pertençamente [sic] tem no
corpo, designadamente nas costas.
E prossegue: «A pergunta feita
esclareceu que na última vez que teve relações sexuais com a depoente, supra
referida, já sabia ou melhor, desconfiava, que a mesma tinha relações sexuais
com o Dr. Jacinto Dias, aliás, dessa vez, a depoente chegou mesmo a declarar
tal facto ao arguido.
«A pergunta feita sobre a razão por
que não obstante ofendido como se considera, e conhecedor de tal facto, manteve
relações sexuais com a depoente, declarou que só nessa altura teve a certeza
absoluta de que depoente mantinha também relações sexuais com o Dr. Jacinto
Dias. Que quando a depoente lhe declarou que também mantinha o referido
relacionamento sexual com o Dr. Jacinto Dias o arguido não reagiu. A pergunta
feita esclareceu que caso não tivesse sido detido e, pela sua parte,
continuaria o seu relacionamento com a ora depoente.»
A acareação não demoveu o
Ministério Público nem o juiz presente, Francisco José Rodrigues de Matos, que
decidiram manter a prisão de Brígida e de João Raimundo.
Não deram, assim, razão às intervenções
dos dois advogados que tentavam mostrar como o caso da «lista negra» tinha mais
do que a Comunicação Social sugeria e a acusação afirmava. E raízes de carácter
mais humano que político. A acareação não deu origem a novas diligências, novas
perguntas ou novas inquirições. Jacinto Dias, por exemplo, nunca foi chamado a
contar a sua versão do alegado affaire.
E talvez seja de registar, de novo,
que as investigações sobre a hipótese de ter sido o pai de Brígida a dar o
dinheiro ao filho e sobre o papel da misteriosa Manuela não foram, depois das
diligências do agente João Oliveira, desenvolvidas pelos dois homens da PJ,
Portugal e Casaleiro, que se ocuparam, até ao mais ínfimo pormenor, de tudo
aquilo que ajudou a construir a tese da «lista negra».
Quanto ao dinheiro, cuja existência
é mesmo posta em dúvida pela defesa de João Raimundo e que só passa pelo
julgamento, em Outubro de 1995, para ser oficialmente declarado apreendido,
encontra-se uma outra referência muito esclarecedora.
É uma carta de Ângelo do
Nascimento, datada de 8 de Março de 1995 e dirigida ao Delegado do Ministério
Público da Covilhã. Nela, Ângelo recorda que solicitara um prazo para «acabar
de fazer a entrega (...) do resto da quantia que recebeu do arguido Luís
Brígida, relativamente à parte excedendo do que já entregou». Mas, acrescenta,
como tem feito «inúmeras despesas relacionadas com o presente processo (...)
não dispõe ainda (...) das quantias necessárias a satisfazer a entrega que se
comprometeu a efectuar», solicita que lhe seja prorrogado o prazo para o efeito
«por tempo não inferior a 60 dias». Dos autos não consta mais nada, nem a
indicação de quanto — e quando — foi entregue... nem sequer a resposta que terá
sido dada a Ângelo. Se é que a teve. E o dinheiro, a tal prova do aliciamento
de Ângelo, desaparece...
Mais tarde, no julgamento da
Covilhã, o tribunal limitar-se-á a dar esses mil contos como «depositados nos
autos» e «perdido a favor do Estado», ganhando a soma em questão um carácter
virtual. E nunca ninguém perguntará se os mil contos não terão servido,
indirectamente, para pagar, de facto, um outro tipo de serviço...
Parte III
Um crime por medida
CAPÍTULO 8
UMA ACUSAÇÃO CONVENIENTE
No dia 25 de Abril de 1995, quando
o País inteiro comemora o 21.º aniversário do 25 de Abril e da restauração das
liberdades, é assinada a acusação que servirá de base ao julgamento de João
Raimundo, preso — recordemo-lo — desde 15 de Novembro de 1994.
E nota-se que a acusação poucas
novidades contém, relativamente a tudo quanto já se soubera pela Comunicação
Social. Com excepção, talvez, da fórmula.
O crime escolhido para fundamentar
a acusação, pelo Ministério Público da Covilhã, é o de «terrorismo na forma
tentada», sendo a acusação movida contra João Raimundo e Luís Brígida e
mantidas as duas situações de prisão preventiva, o primeiro, muito doente, no
Hospital Prisional de S. João de Deus, em Caxias (Lisboa), e o segundo no
Estabelecimento Prisional de Coimbra.
No texto, em 83 quesitos, o
Ministério Público aponta, primeiro, para João Raimundo e chama depois à
acusação Marília Raimundo, recordando os cargos de governadora civil,
secretária de Estado e deputada e os cargos de presidente da Assembleia Geral
da Comissão Política Concelhia do PSD da Guarda e do Instituto Politécnico de João
Raimundo, para concluir que «em virtude dos cargos públicos que ocuparam e,
ainda, por pertencerem a uma família considerada na região como detentora de
considerável situação económica», os dois eram «tidos e conhecidos como pessoas
importantes e influentes, quer pessoal quer politicamente».
Luís Brígida, nomeado em primeiro
lugar pelo seu conhecimento de João Raimundo no liceu, como seu empregado e,
depois, como motorista no Instituto Politécnico, é dado como «ligado, por laços
de amizade e estima» ao casal, tratando, inclusivamente, João Raimundo como
«chefe» e «sendo visto e tido na cidade da Guarda como um seu “fiel servidor”».
Como já se escrevera...
João e Marília Raimundo aparecem em
seguida, no texto, como personagens capazes de terem «influência no acesso a
cargos políticos e profissionais de variadas pessoas», entre as quais se
encontram Jacinto Dias, João Gonçalves e António Soares Gomes, «o que fez com
que estas pessoas ficassem reconhecidas, e de certo modo dependentes» de João e
Marília, «a ponto de lhes garantirem total apoio, quer a nível pessoal, quer a
nível político» e encontrando-se, assim, inibidas «até de tomar determinadas
posições contrárias aos interesses do casal Raimundo com receio de perderem os
seus cargos».
A seguir, entra em cena o Sindicato
dos Professores da Região Centro (SPRC) — membro da Federação Nacional dos
Professores (Fenprof) —, por se ter pronunciado contra a nomeação de João
Raimundo para a presidência do Instituto Politécnico, alegando que o nomeado
não possuiria «perfil» ou formação para o cargo.
Na vertente sindical, no entanto,
não são apresentadas provas de que qualquer dirigente ou activista deste
sindicato estivessem incluídos na «lista negra». Nem parece ser tido como
relevante, para o processo, que o arguido fosse dirigente de um sindicato e de
uma federação sindical que eram ferozes rivais do SPRC e da Fenprof.
A acusação do Ministério Público
inclui, também, um resumo do «caso Bernardo Duarte», inventariando as queixas
deste docente de que teria sido ameaçado e visto o seu carro danificado, tal
como Álvaro Guerreiro.
O processo de Bernardo Duarte
serve, aliás, para dar destaque ao juiz de círculo, Granja da Fonseca, por ter
sido antes objecto de um protesto — de conteúdo não pormenorizado — de João
Raimundo para o Conselho Superior de Magistratura.
A presença de Granja da Fonseca,
escreve-se na acusação, «desagradou ao arguido Raimundo em virtude de, por um
lado, figurar como testemunha de acusação, no referido julgamento [Bernardo
Duarte], um familiar daquele magistrado e, por outro, pelo facto de João
Raimundo estar convicto de que o Dr. Granja da Fonseca subscrevera, alguns anos
antes, um artigo, num jornal regional, que o visava de forma depreciativa».
Esse desagrado traduziu-se, acusava
o Ministério Público, em diversas tentativas de João Raimundo para afastar
Granja da Fonseca, num leque que ia da já citada queixa ao Conselho Superior de
Magistratura até «vários telefonemas anónimos», aparecendo a ligação à «lista
negra», finalmente, nos quesitos 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º e
41.º, como segue:
«Ainda no decurso do julgamento, o
arguido Raimundo confidenciou a Jacinto Dias que qualquer dia mandaria dar uma
sova no juiz Granja da Fonseca, que presidia ao colectivo que o julgava,
«Em dia indeterminado de finais de
1992, decorrendo ainda aquele julgamento, o arguido Luís Brígida encontrou-se
com Mário do Nascimento, irmão de Ângelo do Nascimento, nas proximidades de um
estabelecimento conhecido como “tasca do Acácio”, sito na freguesia de Marialva,
concelho de Mêda,
«A quem propôs que, a troco de
2 000 contos [sic], arranjasse
alguém capaz de dar uma sova no juiz Granja da Fonseca, no prof. Bernardo
Duarte, no jornalista da Rádio F, Rui Isidro e no advogado Álvaro Guerreiro.
«O referido Mário do Nascimento
tinha conhecimento que o Dr. Álvaro Guerreiro era advogado do seu irmão Ângelo,
pelo que, algum tempo depois, lhe comunicou esse facto numa altura em que o
encontrou à saída do Tribunal de Vila Nova de Foz Côa, quando se fazia
acompanhar daquele seu irmão Ângelo.
«Logo após a conclusão do supra
referido julgamento, que culminou com uma condenação do arguido João Raimundo
numa pena de 2 anos e 6 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por dois
anos, ocorreram eleições para a Comissão Política Distrital da Guarda do PSD,
às quais concorreram duas listas encabeçadas, respectivamente, por Marília
Raimundo, então presidente, e Álvaro Amaro,
«O qual acabou por ser eleito,
designadamente, com o apoio de pessoas que anteriormente sempre tinham apoiado Marília
Raimundo, nomeadamente Jacinto Dias, João Gonçalves e António Soares Gomes,
entre outros,
«O que foi considerado pelo arguido
Raimundo como uma traição, o qual referiu por diversas vezes ao co-‑arguido
Luís Brígida que essas pessoas eram uns traidores e que mereciam uma sova,
tendo este último lhe referido que arranjaria alguém que poderia executar essa
tarefa.
«Para início de execução da mesma,
o arguido João Raimundo entregou ao co-arguido Luís Brígida a quantia de um
milhão de escudos».
A história dos encontros entre Luís
Brígida e Ângelo do Nascimento aparece a seguir, terminando com uma descrição
viva da intervenção da PJ, nos quesitos 76.º a 82.º (que, no entanto, volta a
não condizer com o teor das gravações):
«Ao saírem da viatura, o Ângelo apresentou
ao arguido Luís Brígida o agente da Polícia Judiciária Carlos Barata, que os
esperava, como sendo um dos homens que contratara para agredir Jacinto Dias,
«Tendo, de novo, e na presença
deste, o arguido Luís Brígida confirmado que a agressão ao juiz Granja da
Fonseca passava pela ordem expressa do Dr. Raimundo, ora arguido, que se
encontrava em Macau.
«O encontro entre o arguido Luís, o
Ângelo e o agente Carlos Barata foi fotografado constando as mesmas fotografias
junto aos autos (...) e que aqui se dão como integralmente reproduzidas.
«Com a execução do plano atrás
descrito, previamente acordado entre ambos os arguidos, pretendiam, os mesmos,
ofender a integridade física do advogado Álvaro Guerreiro, do prof. Bernardo
Duarte, de Jacinto Dias, do juiz Granja da Fonseca, de João Gonçalves e de
Soares Gomes,
«Pessoas que, na perspectiva do
primeiro arguido o haviam prejudicado politica, pessoal e profissionalmente,
pelo que as agressões de que iam ser vítimas tinham como objectivo intimidá-las
no sentido de, por um lado, as fazer mudar de actuação e, por outro, as
castigar por posições anteriormente assumidas,
«E só não foram concretizadas por
motivos totalmente alheios às suas vontades e desígnios.
«Os arguidos, ao actuarem,
concertadamente, no modo e circunstâncias descritas, agiram voluntaria, livre e
conscientemente.
«Bem sabendo que as suas condutas
não eram permitidas e contrárias à lei.»
Esta versão dos factos, apresentada
pelo Ministério Público da Covilhã nesse mês de Abril de 1995, segue à risca as
conclusões da polícia e a versão que já circulara na Imprensa logo após a
prisão de João Raimundo. Avancemos duas hipóteses: ou as conclusões da
investigação estavam correctas ou a conspiração tinha sido bem preparada por
quem sabia de como se exercitam as leis.
O Dia da Liberdade não é, nesse
ano, um dia de festa para a família Raimundo. João está, na prisão, cada vez
mais doente. Marília sabe que não é acusada no «caso Roupinhas» mas o pesadelo
não terminara. E a filha de ambos afasta-se, perturbada pelo que está a
acontecer.
CAPÍTULO 9
«UMA HEDIONDA E PREMEDITADA ARMADILHA»
Depois de conhecida a acusação
contra João Raimundo, em Abril de 1995, a Guarda transforma-se, aí sim, num
verdadeiro campo de batalha... mas pela justiça.
A acusação teve uma resposta
imediata de Nuno Godinho de Matos, advogado de João Raimundo. Advogado
experiente e bem conhecedor dos meandros judiciais, Nuno Godinho de Matos
estudara a fundo a matéria. E ficara a conhecer bem João Raimundo quando, ao
perceber como a saúde do ex-presidente do IPG corria perigo na prisão, passou a
ser visita assídua na prisão. Mais do que a desagradável situação de um simples
cliente, estavam em causa a vida e a saúde de uma pessoa.
Essa perspectiva, o conhecimento
profundo da situação e das pessoas e a percepção de como fora possível tecer
uma teia tão bem tecida e tão bem amparada na legislação, dá um vigor
excepcional à contestação de Nuno Godinho de Matos, que desmonta a tese do
«terrorismo na forma tentada» no requerimento de instrução dirigido ao
Ministério Público da Covilhã. Que este, no entanto, rejeita tal como já havia
rejeitado diversos pedidos de libertação e outras solicitações interpostas pela
defesa do ex-presidente do Instituto Politécnico da Guarda.
O advogado sistematiza já, de forma
muito clara, todas as dúvidas que suscitam os pressupostos da acusação, onde
quase fazem doutrina não apenas as conclusões subscritas pelos agentes da PJ
mas também as queixas dos homens da «lista negra». E as gravações. E, quando as
põe em causa, atacando a raiz de toda a acusação, Nuno Godinho de Matos está a
apontar o que está errado... tendo que esperar quase quatro anos para que o
Supremo Tribunal de Justiça lhe desse razão.
O que esté em causa, alega, é um
«crime por medida»:
«1. A leitura do presente
processo gera perplexidades tão surpreendentes que o mandatário do requerente
[João Raimundo], depois de o ter lido e estudado, sabendo que o seu mandante
está preso há cerca de seis meses, só é capaz de formular a conclusão seguinte:
que o futuro permita que nunca seja submetido à provação de se cruzar com um
processo penal.
«2. O processo e a prisão do
requerente, perante a lei penal, são incompreensíveis, mesmo quando só se
exigem indícios.
«3. Os factos e as intenções
que estão em causa neste processo, a admitir que os mesmos são verídicos,
incluindo as intenções — e admitindo que simples intenções são puníveis — no
máximo lógico e possível indiciariam o desejo de praticar um crime de ofensas
corporais ou, ainda, se se quiser ir mais longe, um crime de ofensas corporais
com dolo de perigo. Nunca um crime de terro-rismo.
«4. Contudo, como no crime de
ofensas corporais e mesmo no crime de ofensas corporais com dolo de perigo, a
moldura penal não era suficiente para justificar a prisão preventiva, então,
encontrou-se outro crime.
«5. Encontrou-se um outro tipo
de crime, justificando a prisão preventiva que, entretanto, se mantém, pois
este castigo já ninguém lhe tira de cima, nem mesmo uma acusação.
«6. Mas se, quanto à polícia
ainda se pode entender a aplicação dum tipo de crime por “medida”, pois importa
justificar o tempo consumido pelos funcionários com a investigação, tal
actuação já gera alguma perplexidade quando é seguida por outras entidades.
Isto é, quando se acusa um cidadão por um tipo de crime não aplicável aos
factos e intenções.
«7. Escolheu-se um tipo de
crime que não se pode aplicar aos factos constantes da acusação! Nem mesmo às
eventuais intenções do arguido; intenções que lhe sejam atribuídas partindo das
ilícitas gravações que constituem todo o corpo de delito.
«8. Neste processo, existe uma
única realidade: as gravações das conversas dum arguido com o “falso polícia
Ângelo de Trancoso”. Nada mais. Tudo o resto é a repetição por diversas pessoas
do conteúdo dessas gravações.
«9. Essas diversas pessoas
contaram umas às outras o conteúdo das gravações. Seguidamente, as mesmas, por
diversas vezes, vêm aos autos repetir o conteúdo das ditas gravações.
«10. O processo desenvolve-se
total e absolutamente segundo o esquema de pescada de rabo na boca. A disse a B
que, por sua vez, referiu a C, o qual fez saber a D, que seguidamente contou a
E, que do mesmo modo reproduziu perante F, G e H, os quais, depois, comunicaram
a I, J, K e L, e assim sucessivamente até à acusação.
«11. Por surpreendente que
seja, isto é o que sucede neste processo. Neste processo, existem as
declarações do cadastrado “falso polícia Ângelo de Trancoso”, repetidas por
imensas pessoas, incluindo um meritíssimo senhor juiz. Nada mais!
«12. Além disso, existe a
falsificação de uma sova dada a um dos queixosos [Recordemos que Ângelo dissera
a Brígida que Jacinto Dias já fôra agredido.]. Isto é, existe uma mentira
consumada, no mínimo com o conhecimento da polícia.
«13. Existe a mais chocante e
perversa instigação à prática do crime de ofensas corporais por parte do “falso
polícia Ângelo de Trancoso” e de todos aqueles que, sabendo não ser verdadeira
a pretensa sova dada ao queixoso Jacinto, contribuíram para criar essa
falsidade, essa aparente realidade e a mantiveram silenciada, com o intuito de
fazerem investigação penal por conta própria. Diga-se de passagem que, para
acusar por tentativa de terrorismo, é muito pouco e para prender é muito menos.
«14. Então, prende-se uma
pessoa com mais de cinquenta anos, sem o mínimo antecedente criminal, com base
em: 1.º) gravação de conversas feitas por um antigo cadastrado; 2.º) conversas
cujo conteúdo é repetido por várias pessoas, incluindo os queixosos, imensas
vezes nos autos; 3.º) falsificação de factos transmitidos a um arguido, criando
a falsa aparência de que algo tinha sucedido, para provocar esse arguido e o
agora requerente à prática de um crime de ofensas corporais sobre o meritíssimo
senhor juiz Granja da Fonseca e outras pessoas?
«15. Salvo o devido respeito,
uma prisão consumada nestes termos é incompreensível, podendo ser qualificada
em termos que só não se adjectivam por imperativos de ordem deontológica.
«16. Dirá, porém, neste
momento, o meritíssimo senhor juiz de instrução: e o pagamento de mil contos ao
“falso polícia Ângelo de Trancoso”? Como se esqueceu o senhor advogado do
mesmo?
«17. Acontece, porém, que não
esqueceu. Como se compreende que esse dinheiro, se algum dia existiu, não
esteja apreendido à ordem do processo? Onde estão os mil contos? Será que algum
dia existirão? Se existem, porque não foram apreendidos como, nos termos da
lei, tinham de ser?
«18. Será que a polícia quis
deixar o “falso polícia Ângelo de Trancoso” beneficiar desse dinheiro, obtido
nas circunstâncias documentadas nos autos, esquecendo-‑se de o apreender,
apesar do “falso polícia Ângelo de Trancoso” ter declarado que estava pronto a
entregar o mesmo imediatamente.
«19. Ou será que esse dinheiro
nunca existiu, dado que o mesmo não foi apreendido?
«20. Ou será, ainda, que o
“falso polícia Ângelo de Trancoso”, além de ter brincado aos agentes da polícia
infiltrados, depois de ter descrito uma sova que nunca existiu, mentindo,
deliberada e premeditadamente (como os autos documentam) para induzir a prática
de outros crimes, ainda beneficia, por omissão do cumprimento dos deveres da
polícia e da instrução do inquérito, dos mesmos mil contos?
«21. Esta última hipótese não
é crível. Isto é, a polícia não se pode ter esquecido de que tinha o dever de
apreender esse dinheiro. Também não é crível que o Ministério Público se tenha
esquecido de que o tinha o dever de ordenar a apreensão do mesmo, nos termos do
artigo 178.º do Código de Processo Penal.
«22. Como estes esquecimentos
não são críveis, nem sequer são admissíveis, e como os mil contos não estão apreendidos
e depositados na Caixa Geral de Depósitos, os mesmos, obviamente, não existem.
Nunca existiram.
«23. Não se diga, agora, que
não foram apreendidos porque o “falso polícia Ângelo de Trancoso” estava
disposto a entregá-los quando fosse necessário. Como não entregou, só se pode
concluir que os mesmos não existem, tendo também aí mentido, como já mentiu
quando disse que tinha batido no queixoso Jacinto, instigando à prática de
crimes.
«24. Esta é a matéria do
processo: gravações ilegais e ilícitas; factos que não existiram apresentados
como verdadeiros, para induzir terceiros à prática de crimes; mil contos
alegadamente entregues para pagar o preço da prática dum crime, que nunca foram
apreendidos ou por incompreensível negligência das autoridades competentes, ou
porque nunca existiram, como é, obviamente, o caso.
«25. Com base nisto, acusar e
prender é incompatível com a inteligência humana e com o direito. A menos que
se tenha deixado de viver num Estado de Direito, como pode pensar um observador
menos atentos que leia o presente processo.»
Nuno Godinho de Matos tece, depois,
considerações sobre o crime de terrorismo, de definição recente e «praticado
pela primeira vez, como uma manifestação da “guerrilha urbana” desenvolvida por
organizações políticas das nações da Palestina e do Norte de África de
extrema-esquerda».
O advogado separa o crime de
terrorismo que, «mesmo na forma tentada exige uma componente política ou
ideológica muito forte que nestes autos não existe», da motivação alegada pela
acusação: «intimidar certas pessoas»... que nem sequer tem que ver com a paz
pública.
Salientando que «nem tentativa
existe, só existem actos preparatórios mesmo seguindo a factualidade da
acusação», Nuno Godinho de Matos defende que «o Tribunal não pode acusar com
base numa ficção criada pelo “falso polícia Ângelo de Trancoso”, sabe-se lá com
que cumplicidades».
Este, recorda, «não é, sequer, um
agente da polícia infiltrado nas relações dum criminoso, com o fim de obter
informações destinadas ao inquérito policial» mas sim alguém que «actua como um
verdadeiro provocador e instigador do crime, promovendo a prática do mesmo,
quer com as mentiras que propala (a sova dada no queixoso Jacinto) quer com o
conteúdo das suas falas constantes das gravações, insistindo, sistematicamente,
no desejo de ordens para ir bater no juiz [Granja da Fonseca]».
Arrasador, nota Nuno Godinho de
Matos que «o conteúdo das falas do “falso polícia Ângelo de Trancoso” é
nauseante, sendo revoltante a instigação ao crime constante das mesmas e obrigando
a leitura das mesmas a fazer a seguinte pergunta: quem lhe encomendou o recado?
Ao serviço de quem trabalha o “falso polícia Ângelo de Trancoso”?»
E acrescenta: «Se o conteúdo geral
das falas do dito senhor provoca a náusea e a pergunta que se formulou, a frase
transcrita em último lugar “Talvez antes do julgamento, que é pró alvo... ficar
intimidado...” obriga mesmo a perguntar quem lhe terá ensinado a mencionar o
verbo intimidar nesta conversa? Seguramente alguém que conhece o Código Penal e
o tipo legal do crime de terrorismo. O fato cai como uma luva!»
«Não estará já patente e claro que
o presente processo encerra uma hedionda e premeditada armadilha montada a um
cidadão livre da República? Não têm os processos criminais de ser sérios, no
modo como são instruídos? Será que os processos-crime são compatíveis com
actuações como a do “falso polícia Ângelo de Trancoso”? Pode um cidadão estar
preso com base numa instrução como a que agora se analisa? Pode-se, em processo
penal, induzir um homem de pouca cultura a dizer tudo e mais alguma coisa,
inclusive a fazer especulações, para, depois, se acusar e prender um outro
homem?», pergunta Nuno Godinho de Matos.
Este documento, onde o advogado
considera não puníveis os actos preparatórios do crime de terrorismo a ser
aceite a tese da acusação e onde se defende a nulidade das gravações, contém,
ainda, uma referência — importante — ao «Roupinhas»... numa altura em que este,
depois de ter sido apresentado pelo grupo da «lista negra» quase como uma prova
viva, deixara de gozar de credibilidade junto da PJ.
«Quem levou o cadastrado
“Roupinhas” a ir contar à polícia e a várias pessoas, designadamente, ao
Meritíssimo Senhor Juiz de Direito, o queixoso Sr. Dr. Granja da Fon-seca, a
história por ele contada, levando esse magistrado a prestar as declarações que
prestou nos autos?», interroga.
Perguntando por que motivo «se
pretendia incriminar, também, a mulher de João Raimundo», Nuno Godinho de Matos
observa, de seguida, que «o processo resume-se, pois, às gravações, à sua
repetição por outras palavras, estilo redacção da quarta classe, e à diatribe
de alguém que se desconhece através do cadastrado “Roupinhas”, que não se sabe
como apareceu no processo e na polícia».
Ao avançar com o pedido de
anulação, como prova, das gravações por serem «gravações particulares» (pedido
a que só o Supremo Tribunal de Justiça irá dar razão), e recordando que mesmo a
polícia, «se quiser gravar as conversas telefónicas de um cidadão tem de,
primeiro, pedir autorização a um juiz de instrução (...) sendo nulas as
gravações de conversas telefónicas obtidas fora deste condicionalismo», Nuno
Godinho de Matos estava bem acompanhado, como viria a confirmar-se.
Três meses depois, em Julho, Manuel
da Costa Andrade, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, e Marcelo
Rebelo de Sousa, o professor da Faculdade de Direito de Lisboa que seria eleito
presidente do PSD em 1996 na sequência das derrotas eleitorais de Cavaco Silva,
produzem dois pareceres sobre as gravações. Que não deixam margem para dúvidas:
elas são mesmo inaceitáveis. E, sendo-o, só faria sentido o arquivamento do
processo pois não haveria prova bastante para a acusação.
Mas vamos aos pormenores destas
peças de artilharia pesada, que fazem parte da mesma guerra.
No seu parecer de doze páginas,
datado de 30 de Julho, Marcelo Rebelo de Sousa socorre-se da Constituição
(art.º 32.º) para recordar que «são nulas todas as provas obtidas mediante
tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva
intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações».
Distinguindo a intromissão abusiva
da que pode ser feita em casos legalmente justificados em matéria de processo
criminal — recorde-se que as conversas com Brígida foram gravadas por Ângelo antes
de haver processo e sem autorização judicial —, Marcelo remata: «É possível
extrair a conclusão de que é inconstitucional norma legal ou interpretação de
norma legal que permita a utilização, em processo penal, de gravação por
cidadão de conversa telefónica com outro cidadão, não tendo existido prévia
autorização judicial ou jurisdicional.»
Por seu turno, Manuel da Costa
Andrade, no seu parecer de 22 páginas com data de Agosto, vai mais longe.
Observando que «o mero propósito de
produzir, juntar, salvaguardar e carrear provas para o processo penal não
justifica o sacrifício do direito à palavra em que invariavelmente redundam a
produção ou utilização não consentidas das gravações», aponta o dedo acusador
a, pelo menos, Ângelo de Trancoso:
«a) A gravação feita por B preenche
a factualidade típica do crime de Gravações e fotografias ilícitas (art.º 179.º
do Código Penal) à margem de qualquer causa de justificação. É, por isso, uma
gravação penalmente ilí-cita. (...)
«c) A ordem jurídica portuguesa
(art.º 167.º do Código de Processo Penal) denega expressamente qualquer
eficácia justificativa em relação às gravações produzidas com o único propósito
de servir os fins próprios do processo penal: juntar provas em ordem a uma mais
eficaz perseguição dos autores de infracções criminais.
«d) A conduta de B — gravação das
conversas com A sem o conhecimento nem o consentimento deste — não está
justificada pelo princípio da prossecução de interesses públicos legítimos
porque este derimente da ilicitude não está expressamente previsto para o crime
do art.º 179.º do Código Penal. Como não está justificada pelo princípio de
ponderação de bens, sob a forma de direito de necessidade (art.º 34.º do Código
Penal) porque a gravação não era meio necessário ou idóneo para afastar o
perigo que corriam a vida ou a integridade física das pessoas supostamente
ameaçadas. Para afastar o perigo bastava apenas que B se recusasse pura e
simplesmente a levar a cabo as agressões que lhe terão pedido que realizasse.
«e) A valoração não consentida da
gravação em processo penal é um facto penalmente ilícito.
«f) Esta valoração está em qualquer
caso excluída porque a tanto se opõe uma invencível proibição de valoração. E
isto quer a gravação tenha sido produzida de forma penalmente ilícita quer de
forma não ilícita (porque atípica ou típica mas justificada).»
A estes dois juristas, junta-se,
ainda, um terceiro, Jorge de Figueiredo Dias, professor da Faculdade de Direito
de Coimbra, que, num parecer de 28 páginas datado de Junho, analisa pormenorizadamente
a acusação de crime de terrorismo, dando mais força à refutação do pressuposto
essencial da acusação.
Afirma Figueiredo Dias: «O crime de
ofensas corporais alegadamente projectado pelos arguidos não tinha a
presidir-lhe a intenção terrorista de intimidar certas pessoas, no sentido que
esta expressão colhe dentro do tipo do art.º 289.º [do Código Penal]».
E acrescenta: «Desde logo, resulta
positivamente dos factos narrados nos autos que a actuação dos arguidos seria,
quando muito, guiada por um sentimento de vingança. Por outro lado, não resulta
dos mesmos factos que os arguidos tivessem uma intenção de intimidar qualquer
das supostas vítimas, pois não se indica qual a “mudança de actuação” (acção ou
omissão) que os primeiros esperariam obter das segundas.
«Além disso, e decisivamente, o
objecto da alegada actuação dos arguidos era constituído exclusivamente por
determinadas pessoas contra quem os moviam motivos pessoais, não contra um
círculo de pessoas, identificável por uma circunstância comum, que
transcendesse em amplitude a soma dos ditos indivíduos.
«Não poderia estar presente, pois,
a intenção terrorista de intimidação que causa um dano à paz pública, pelo que
não se encontraria presente um dos elementos necessários ao preenchimento do
tipo do art.º 289.º.
«Pese embora as razões precedentes
serem de molde a impossibilitar a responsabilização dos arguidos por um crime
de terrorismo, ocorre ainda mostrar que os factos acusados não podem ser
imputados subjectivamente aos arguidos.»
Ou seja, «os arguidos não poderiam
ser considerados autores imediatos de um crime de terrorismo, pois terão
alegadamente encarregado alguém de o perpetrar contra o pagamento de uma
quantia em dinheiro [e] não poderiam ser punidos como instigadores de um crime
de terrorismo, pois o art.º 22.º do Código Penal restringe a punibilidade do
instigador aos casos em que exista um começo de execução por parte do instigado
que, in casu, não se verificou».
«Ainda que se entenda que a lei
admite, em abstracto, a possibilidade de punição do autor mediato
independentemente de um começo de execução por parte do autor imediato, não são
imputados aos arguidos factos que constituam, para os efeitos da punição da
tentativa prevista no art.º 22.º, actos de execução do crime», afirma Figueiredo
Dias, concluindo:
«Na verdade, o pagamento de uma
quantia em dinheiro e a comunicação de informações acerca do modo de execução
do crime não preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime, nem são
idóneos a produzir o resultado típico — in
casu, lesões corporais com intenção de intimidar —, nem são de natureza a
fazer esperar no caso dos autos, segundo a experiência comum e salvo
circunstâncias imprevisíveis, que se lhes sigam actos das espécies precedentes.
«Sendo certo que o art.º 289.º do
Código Penal não pune os actos preparatórios, os factos narrados na acusação
não importam a prática de um crime de terrorismo tentado por parte dos
arguidos.»
Estes textos, essenciais para a
compreensão do caso, são armas importantes na guerra de nervos que se desenrola
entre a rentrée de Janeiro e o julgamento em Outubro. Mas não são as únicas,
até porque a guerra se desenvolve em várias frentes: na frente judicial, no
caso da defesa de João Raimundo (e de Luís Brígida); na policial, nas
actividades desenvolvidas pelos agentes da Judiciária; na da política
educativa, no quadro das eleições para a presidência do IPG; e na da opinião,
nos órgãos de comunicação social, onde continua a assomar, sempre, a regra de
um vale-tudo que, visto de forma distanciada, vai revelando fraquezas,
fragilidades e cumplicidades insuspeitadas.
Foi o caso, por exemplo, da Rádio
Altitude. Esta estação de rádio, então dependente da direcção do Hospital
Distrital da Guarda por razões históricas, transformou-‑se num dos acusadores
públicos de João Raimundo.
A quantidade e a discutível
qualidade das muitas afirmações produzidas pelos seus jornalistas Gabriel
Correia, director da estação, e Madalena Ferreira deram origem à maioria dos
processos que João e Marília Raimundo moveram contra vários jornalistas por
difamação.
E que havia razão para isso,
mostra-o um apontamento de reportagem que o autor deste livro publicou no Diário de Notícias de 6 de Maio, dando
conta de uma visita a um compartimento existente dentro do gabinete da
presidência do IPG, que fora ocupado por João Raimundo. Para a Rádio Altitude,
havia lá um bunker. Mas o jornalista
encontrou outra realidade bem diferente:
«... De um lado, estantes (com um
chaveiro e de onde a Polícia Judiciária levou documentação); do outro uma casa de
banho.
«Lá dentro nada parecia ter de
enigmático mas, nos noticiários da Rádio Altitude, esse duplo compartimento era
um bunker. Conta Gabriel Correia:
“Houve uma vistoria da PJ ao IPG e foi quando descobriu lá o tal bunker. A PJ diz que existe, que entre a
casa de banho e outro compartimento qualquer há uma parede giratória ou
qualquer coisa dessas. Eu, por acaso, nunca lá fui...”» Ou seja: ele nunca foi
ver mas garantia que havia. Em termos de deontologia estamos conversados.
«Novela casal Raimundo», «histórias
diabólicas», «João Raimundo sabia de tudo, fazia o respectivo relatório,
utilizado, quantas vezes, como chantagem», «o bunker, com acesso directo pelo gabinete oficial do presidente
estava disfarçado com uma estante e afinal não passa de uma porta giratória» —
estas e outras expressões fazem parte, só, de duas das muitas peças
radiofónicas que a Rádio Altitude dedicou militantemente ao assunto.
E na guerrilha que a Rádio Altitude
parece conduzir, nem poderia faltar uma tentativa de vitimização, de que a Lusa
se fez eco, levando a que, no dia 13 de Maio, os jornais se dêem conta de uma
insólita tentativa de «sabotagem» contra a Rádio Altitude.
Do seguinte modo: «Cabos de aço de
segurança das antenas de onda média da Rádio Altitude, da Guarda, foram cortados
com alicates de grande força na tentativa de causar insegurança no equipamento,
disse o director da estação (...) Gabriel Correia adiantou que “os autores
deste acto de vandalismo procuraram criar problemas à Rádio Altitude” [que] tem
tido outros problemas, citando o caso de, pelo menos, três jornalistas (...)
que estão sob instauração de cerca de uma dúzia de processos judiciais, todos
relacionados com o caso do ex-presidente do Instituto Politécnico local, João
Raimundo, há meio ano detido em Caxias».
Isto passava-se na Guarda. Mas, no
resto do País, a Comunicação Social continuava a fornecer uma moldura de
comentários desfavoráveis, sempre taxativos, feitos por opinion makers e dirigentes políticos que, sem terem alguma vez
observado de perto o caso, por certo não podiam deixar de influenciar quem,
numa ou noutra esfera, iria tomar as primeiras grandes decisões sobre o preso
João Raimundo.
Vejamos, recuando ao ano de 1994, o
que escrevia Paulo Portas — em 18 de Novembro desse ano — em O Independente, jornal que então
dirigia, numa peça significativamente intitulada «Al Capone nas Beiras»:
«O Dr. João Raimundo era presidente
do Instituto Politécnico da Guarda. A única razão para desempenhar essa função
era ser casado com uma deputada do PSD, ao tempo a “coronela” do distrito.
Tinha, portanto, uma legitimidade de marido. Por isso e só por isso, o partido
deu-lhe um cargo público, dignidade de Estado, salário melhor e chauffeur. (...) O Dr. João Raimundo
tinha um motorista que, além de conduzir, parecia vocacionado para actividades
dignas de Al Capone. É nas mãos do motorista que surge uma lista de
“assassinatos potenciais”. Suspeita-se que o dr. João Raimundo fosse o
instigador de má sorte que podia acontecer aos seus inimigos jurados...»
E, sobre o mesmo assunto, escreve o
futuro (embora temporário) deputado do PSD, Vasco Pulido Valente, na mesma
edição:
«... o alegado “terrorismo” do
nosso Raimundo parece pequeno e frívolo: questiúnculas na Politécnica da
Covilhã [Na Covilhã?! Na Covilhã existe uma universidade e não um instituto
politécnico...], insignificantes eleições na “distrital” do PSD, a
surpreendente vitória do eng.º Amaro e uma suposta “lista” de vítimas, entregue
a um putativo “vingador”, de mão fraca e coração mole denominado Brígida. Nem a
nobre deputada Marília, de lírica memória, tenta competir com a sra. Macbeth.
Em vez de pedir sangue, proclama nos jornais a sua inocência e chora os seus
privados prejuízos.»
Detenhamo-nos, ainda, em Novembro.
Em 21 desse mês, o deputado e dirigente comunista João Amaral, actualmente
considerado um dos «renovadores» do PCP, faz, na sua coluna do Jornal de Notícias («Um JR de trazer
pela Guarda»), as seguintes afirmações:
«Condenado, o Dr. João Raimundo
terá feito a famosa “lista negra”: o juiz que o condenou, o advogado de
acusação, alguns membros da “distrital” que se “passaram” para o actual líder
da distrital, o secretário de Estado Álvaro Amaro, que derrotou a sua mulher
por escassos cinco votos. Terá encarregado o seu motorista, também preso, de
contactar profissionais em agressões e outras operações terroristas. Assim
terão chegado ao Ângelo “Trancoso”, um conhecido operacional da rede bombista
que em 1975 saqueou e incendiou sedes de partidos de esquerda e agrediu e
assassinou militantes desses partidos, incluindo do PCP.» E, logo a seguir,
refere-se, sem margem para dúvidas, à «denunciada relação entre quadros do PSD
e um grupo terrorista que assolou o país em 1975».
Faz parte do anedotário popular a
constatação de que uma mentira muitas vezes repetida se transforma em
verdade... sem que, nesta espécie de julgamento popular a que a Imprensa deita
mãos, funcione, sequer, o princípio jurídico que se traduz na expressão in dubio pro reo: ou seja, o réu tem
direito à dúvida sobre a sua culpabilidade.
Veja-se como, em 25 de Novembro de
1994, no jornal Matosinhos Hoje, o
cidadão Artur Ribeiro (identificado com fotografia e como «comerciante e
dirigente do PCP»), garante, taxativamente: «Entretanto, João Raimundo
encarregou o seu motorista de contactar alguns profissionais da agressão e do
terrorismo...»
Esta verdadeira acção ofensiva
prolonga-se, naturalmente, pelo ano de 1995. Em 19 de Janeiro, no jornal Açores, André Bradford (identificado só
com fotografia) assevera, também sem dúvidas de espécie nenhuma:
«O sr. João Raimundo, ex-presidente
do Instituto Politécnico da Guarda (IPG) e marido da deputada do PSD daquele
distrito, Marília Raimundo, elaborou uma lista de pessoas, do PSD e não só, que
pretendia eliminadas, para que ele a sua mulher prolongassem o seu domínio
caciquista e feudal no distrito. Para isso, tinha inclusivamente contratado o
seu motorista, um ex-operacional da rede bombista do ELP [sic]. O que valeu é que o tal motorista era amigo de um dos visados
e decidiu não fazer o serviço e denunciá-lo à Polícia [O motorista?!].»
E nem Marília Raimundo escapa. No
jornal local Terras da Beira, em 23
de Março de 1995, em texto não assinado, garante-se que a deputada «foi acusada
de tentar contratar operacionais contra os elementos que levaram à prisão JR e
motorista» e que «parece credível que, caso se confirme a suspeita, vá também
parar à prisão».
De mais longe, do Alentejo, a 24 de
Março, no jornal Diário do Alentejo,
também vem uma opinião idêntica: «De referir o curioso facto da deputada do PSD
Marília Raimundo, que terá aliciado um “operacional” para organizar acções
intimidatórias sobre testemunhas importantes do caso da chamada “lista negra”
da Guarda.»
Mas, neste quadro de guerra — onde
as críticas misturam, como iguais, João e Marília Raimundo e a direcção
nacional e local do PSD cavaquista — há uma frente que parece finalmente
pacificar-se, embora por pouco tempo: o próprio Instituto.
Nas eleições descem a terreiro só
duas figuras locais: Álvaro Bento Leal e Amândio Baía, ambos professores no Instituto,
o primeiro proveniente da Universidade da Beira Interior e o segundo formado no
próprio Instituto. Ambos têm ligações, uma mais aberta outra mais discreta, a
João Raimundo, sendo Bento Leal primo do ex-presidente e Amândio Baía afilhado
do casal.
As eleições, em 24 de Fevereiro,
dão a vitória a Bento Leal, numa demonstração inequívoca de apoio a alguém que
ainda se apresentava, então, como seguidor incondicional de João Raimundo,
invocando um «imperativo moral» para se candidatar e chegando a afirmar o que
três anos depois negaria: «Era necessário demonstrar que o IPG é uma obra séria
e mostrar que João Raimundo deve ser absolvido em qualquer julgamento (...) Se
ele não tivesse feito a obra que fez, não teria inimigos» (Diário de Notícias, 8 de Maio).
Os resultados são contestados por
Amândio Baía e é preciso esperar quase três meses para que, em 2 de Maio, a
ministra da Educação, Manuela Ferreira Leite, e o secretário de Estado do
Ensino Superior, Pedro Lynce de Faria, cheguem finalmente a uma decisão sobre a
homologação dos resultados e a comuniquem directamente aos interessados.
Deixando, no entanto, outra dúvida no ar: sendo Amândio Baía o candidato que
menos ligações parecia ter com João Raimundo, seria este, a vencer, mais
depressa reconhecido como tal por quem tinha chamado a Lisboa o homem que
algumas pessoas sabiam que estava prestes a ser detido?
É certo que a gestão de Bento Leal
nunca atingiria o nível e o dinamismo da do seu antecessor, dando mesmo origem
a uma intervenção da Inspecção-Geral da Educação, em 1997, e a um processo
disciplinar contra o próprio em 1998, decidido pelo Ministério da Educação.
Mas, naquela altura, a homologação das eleições foi um sinal de que todas as
guerras podem ter um fim. Ou, na pior das hipóteses, uma simples pausa... que,
neste caso, era obviamente útil para preparar a batalha seguinte: o julgamento
que, pelo menos, poderia permitir que João Raimundo saísse em liberdade.
CAPÍTULO 10
O JULGAMENTO
«A acusação é absolutamente falsa,
sendo parte da decoração necessária à invenção do crime de terrorismo, para me
poder ser imputado um crime punido, segundo o código penal antigo, com uma pena
até 10 anos, pena que justificava, se é que não exigia, a prisão preventiva. É
preciso não esquecer que o sofrimento e a injustiça da prisão preventiva,
durante quase um ano, ninguém nem nada pode apagar, nem mesmo a absolvição que
espero e desejo. Ora, esse resultado foi atingido, foi alcançado na plenitude,
por quem o quis obter.»
Estas palavras de João Raimundo,
publicadas em entrevista concedida ao Diário
de Notícias no dia 11 de Outubro de 1995, são reveladoras.
Começava nesse dia, na Covilhã, o
seu julgamento e o de Luís Brígida. Era o momento da verdade, a batalha final
de um processo longo de um ano e havia chegado a altura de dar tudo por tudo
para afirmar de que lado estava a justiça, de levar mais longe o que se
percebia ser a crescente diminuição da solidez da acusação de «terrorismo na
forma tentada».
«Eu não faço política», garantiu
João Raimundo, ainda da prisão, na mesma entrevista.
E acrescentava: «Os meus interesses
são sindicais, científicos e pedagógicos. Por que motivo desejaria eu vingar-me
de outras pessoas, com as quais nem sequer me encontro na vida profissional ou
social? E ainda por cima escolher uma vingança violenta! Isto quando eu nunca
tive uma confrontação física com qualquer outra pessoa, nem mesmo na escola
primária! Não é credível, é um absurdo. Porém, como foi divulgado em jornais,
revistas e na televisão, passou a ser verdade. A mentira, pela força da
repetição, torna-se verdade e, por vezes, história.»
João Raimundo refutava, assim, a
tese da «lista negra»: «Quanto à dita “lista negra”, nem sequer sei a
totalidade dos nomes que nela incluem, e como já a vi escrita com diferentes
composições limito-me a dizer que a mesma só não é pueril por ser um dos
elementos — aliás falso — que explica a minha prisão. Nunca fiz qualquer lista
de pessoas a “sovar” ou a espancar e nunca quis vingar-me de qualquer pessoa.»
«Os erros judiciários existem e eu
sou vítima de um», dissera também ao Expresso,
que publica as suas declarações a 29 de Setembro.
«A mentira, pela força da
repetição, torna-se verdade e, por vezes, história» — a afirmação de João
Raimundo, que se sentou nessa manhã no banco dos réus no Tribunal da Covilhã,
ao lado de Luís Brígida (este, calado e constrangido), é uma legenda adequada
para os dias que vão seguir-se.
O julgamento, que teve na
Comunicação Social o eco inevitável (eco que não reproduziu, no entanto, o
verdadeiro teor do que lá se passou), começou por uma decisão, requerida pela
defesa dos dois homens: que os libertem, porque não fogem, e porque João
Raimundo, detido no Hospital-Prisão de Caxias, está doente, como bem o provam
os médicos.
Por esse motivo, o começo é, de
certa forma, uma reviravolta como, em certa medida, também o será o fim
(provisório), quando o colectivo de três juizes troca a acusação de «terrorismo
na forma tentada» por uma sentença de ofensas corporais. É uma mudança de
sentido que, sendo um recuo relativamente às intenções iniciais, não deixará de
ser um recurso para poder condenar os dois arguidos com uma pena tão pesada
quanto a lei em vigor o permitia.
No entanto, nesse dia 11 de
Outubro, ao contrário do que as autoridades judiciais haviam feito durante os quase
doze meses de cadeia do ex-presidente do Instituto Politécnico da Guarda, o
Tribunal da Covilhã ainda se consegue pronunciar pela liberdade provisória de
João Raimundo, decisão que estende a Luís Brígida. E João Raimundo é
imediatamente posto em liberdade provisória e é com uma voz embargada pela
emoção que o comunica aos amigos, nessa noite, no hotel da Covilhã onde é
mandado instalar-se.
Esta decisão do Tribunal, aguardada
com alguma expectativa, é quase uma surpresa porque tudo estava preparado para
que João Raimundo visse a sua condenação inicial — feita pela Comunicação
Social — ratificada desde o primeiro instante do julgamento.
A condenação como terrorista tinha
que ser pronunciada — era o significado dessa mensagem que se podia ler nas
entrelinhas de quase todas as matérias publicadas nos jornais, quando as
atenções lentamente se voltam da derrota estrondosa do cavaquismo, nas eleições
de 1 de Outubro de 1995, para o julgamento da Covilhã.
Aliás, o julgamento não deixa,
indirectamente, de ser marcado pelas sequelas da derrota eleitoral: o homem que
sucedera a Marília Raimundo na chefia do PSD da Guarda, o secretário de Estado
da Agricultura Álvaro Amaro, o homem de confiança do líder Fernando Nogueira,
herdeiro transitório de Cavaco, não conseguira aguentar o eleitorado laranja e o seu partido fica num pouco
honroso segundo lugar, com o PS e o dirigente socialista António José Seguro a
exibirem uma saborosa vitória.
A pergunta — e alguém a terá feito
entre os social-democratas locais — era inevitável, mesmo tendo em conta o
panorama político geral do País: se Marília Raimundo tivesse mantido o seu
lugar, seria diferente o resultado na Guarda? Álvaro Amaro nunca poderá
livrar-se do peso sombrio dessa dúvida...
Entretanto, a Comunicação Social de
expansão nacional começa a deslocar-se para a Covilhã e os seus repórteres vão
relatando — e fazendo títulos à medida — que «Raimundo nega tudo» e que Brígida
se mantém silencioso. Se a tese da «lista negra» ainda aparece como explicação
essencial para o que estava a acontecer, já se falará, a certo ponto e
abertamente, no obscuro objecto do desejo comum de Brígida e de Jacinto Dias.
Quanto aos homens da «lista negra»,
eles parecem distanciar-se e até Jacinto Dias, antes da leitura da sentença,
faz questão de desistir de qualquer processo contra os dois arguidos.
Assim, quem acaba por adquirir
maior notoriedade são Ângelo de Trancoso (pelas razões óbvias de ter sido, como
«falso polícia», um herói duvidoso) e Bernardo Duarte.
Este, aliás a única vítima putativa
a introduzir no julgamento um pedido de indemnização por alegadas ameaças e
prejuízos psicológicos decorrentes da sua inclusão na «lista negra», nunca
deixará de manter uma obsessão muito particular contra João Raimundo, mesmo
depois das decisões do Supremo Tribunal de Justiça.
A defesa de João Raimundo continua,
entretanto, a assentar, desde o início, num pressuposto essencial: as gravações
não servem, são ilegais.
Para o efeito, brande os pareceres
que as consideram — por terem sido feitas sem autorização — ilegais e
impróprias para uso em tribunal.
Este é um dos pontos mais
interessantes do processo.
O registo daquelas conversas fora,
de facto, feito sem autorização judicial. E não podem ser consideradas legais.
Mas o que lá está, com Ângelo do Nascimento a aliciar Brígida para atacar
pessoas que o próprio ex-‑terrorista indica, não é suficientemente forte para
dar solidez à acusação. Que (talvez por isso mesmo?) nem faz questão de as
utilizar no tribunal.
Ou seja, para a acusação, desde que
as gravações não fossem escalpelizadas, estava ali tudo. E talvez fôsse melhor
nem pôr mais nada...
E para quem, nos vários sectores
envolvidos, nunca as ouvira nem lera as suas transcrições, a Comunicação Social
— através das habituais «fontes policiais» nunca identificadas — já dissera
tudo: o motorista de João Raimundo queria ver agredidos alguns homens de quem o
ex-presidente do IPG e a mulher não gostavam.
Aliás, é exemplar o modo como, em
30 de Junho, o Público titula, em
jeito de ponto de situação, que será a Covilhã o local escolhido para o
julgamento: «Lista negra e sede de vingança» (sem aspas) e, em legenda a uma
fotografia de João Raimundo: «João Raimundo: um juiz da Covilhã decidirá se
houve terrorismo».
A batalha da Covilhã é, pode
dizer-se, violenta e passará quase um mês antes de a sentença, tão controversa
como a acusação, ser conhecida.
A postura de João Raimundo e de
Luís Brígida — como a relatarão os jornais — é significativamente distinta.
Enquanto o motorista, segundo o seu
advogado, Rodrigo Santiago, apresentava «falta de condições psicológicas» para
intervir, João Raimundo falava sem medo, para negar e rejeitar tudo aquilo de
que era acusado, contra-atacando sem medo diante dos juizes e do Ministério
Público.
«Nunca mandei dar sovas em ninguém.
A violência é o argumento dos que não têm razão», disse, refutando todas as
acusações e todos os argumentos que davam corpo à acusação numa resposta de
quase três horas.
A tal vendetta? Seria «mal empregado gastar o dinheiro dessa maneira».
Dissera ao motorista que este ou
aquele devia ser molestado? «As principais conversas que mantinha com o meu
motorista eram sobre futebol porque somos de clubes diferentes.»
Estava no aeroporto de Londres, no
regresso de Macau, quando soube da prisão do motorista e houve quem dissesse
que ia fugir para o Brasil? «Já lá estive uma vez mas não gostei muito do
país.»
Quis vingar-se por Marília ter sido
derrotada no PSD da Guarda? «A derrota da minha mulher, pessoalmente, foi um
alívio. Ficámos com muito mais tempo livre.»
Era assim tão poderoso o casal
Raimundo na cidade? «O casal só existe em casa. A expressão “casal Raimundo” é
quase ofensiva para mim. Eu fiz a minha vida, a minha mulher fez a dela,
tínhamos uma vida separada em termos políticos.»
O julgamento, onde são ouvidas 44
testemunhas, fica marcado por algumas sessões à porta fechada (no caso de
Álvaro Guerreiro e de Granja da Fonseca, ambos a invocarem a sua situação
profissional, o primeiro por ser advogado, o segundo por ser juiz) e por um
incidente que envolve o mesmo Granja da Fonseca.
Atenhamo-nos, para que conste, nos
relatos feitos por três jornais sobre este acontecimento:
«A audição de Granja da Fonseca, a
seu pedido, decorreu à porta fechada. Uma situação que lançou tumular silêncio
nos corredores do Tribunal da Covilhã até cerca das 16 horas, pese embora a
presença massiva de órgãos de Comunicação Social. A esta hora, vem a revelação.
Aos jornalistas, o magistrado mostra-se “profundamente chocado” com o que tinha
acontecido com a recolha do seu depoimento. “Durante a manhã, fui ouvido e tido
como pessoa respeitável e competente. Mas à tarde, o advogado Rodrigo Santiago,
responsável pela defesa de Luís Brígida, fez um requerimento no qual prescindia
do meu depoimento, alegando que sou uma pessoa doente e afectada nas minhas
capacidades psíquicas”. E Granja da Fonseca conclui: “Num curto espaço de tempo
deixei de ser uma pessoa consciente para passar a inimputável”. Face a este
incidente, que não pretende interpretar, o magistrado requereu uma certidão da
sessão para enviar à Ordem dos Advogados, ao mesmo tempo que admite mover um
processo contra Rodrigo Santiago. Granja da Fonseca afirmou que foi a primeira
vez que se viu numa situação destas. De primeiro nome de uma lista negra de
pessoas a atingir, o magistrado transformou-se, segundo ele próprio, numa
espécie de arguido. Uma situação tanto mais grave “pois não pedi nem pedirei
qualquer indemnização. Aliás nem queixa apresentei. Não é meu hábito”.» (Teresa
Cardoso, Jornal de Notícias,
13/10/95)
«...O juiz Granja da Fonseca,
ouvido à porta fechada a seu pedido, revelou no final do seu depoimento ser sua
intenção proceder criminalmente contra o advogado Rodrigo Santiago (...).
Fá-lo-á porque, segundo disse aos jornalistas, o causídico prescindiu das suas
declarações, alegando que ele apresentava “perturbações intelectuais
volitivas”. “Foi o mesmo que me chamar inimputável”, observou, comentando ser
“incrível” o que se estaria a passar “nos corredores” do tribunal. Rodrigo
Santiago respondeu, dizendo que não queria ofender Granja da Fonseca e apenas
fizera notar que este não se encontrava em condições para depor. “Até chorou!”,
exclamou.» (Alexandra Campos, Público,
13/10/95)
«O longo depoimento de Granja da
Fonseca ficou marcado por vários incidentes e pela recusa dos advogados de
defesa em lhe fazerem perguntas. No final, aquele magistrado anunciou que iria
apresentar uma queixa-crime e uma participação à Ordem dos Advogados contra o
advogado de defesa Rodrigo Santiago, já que se sentira injuriado com o conteúdo
de uma declaração feita em acta por este causídico. Segundo apurou o Expresso, tal declaração é mais ou menos
do seguinte teor: a lei é igual para todos, embora seja mais igual para uns do
que para outros. A testemunha que acaba de depor é membro de um órgão de soberania
e como tal tem de ser respeitada. Porém, como ficou evidente para este
tribunal, trata-se de uma pessoa efectivamente perturbada nas suas capacidades.
É um homem doente e por essa razão a defesa recusa-se a fazer-lhe perguntas.
(...) Os restantes advogados de defesa recusaram-se também a fazer perguntas a
Granja da Fonseca mas sem pôr em causa as suas faculdades, considerando apenas
que o seu depoimento revela grande animosidade contra João Raimundo.» (António
Marinho, Expresso, 14/10/95)
Quem também esteve no centro das
atenções foi Ângelo do Nascimento.
O «operacional do MDLP», como foi
geralmente mencionado, parece ter procurado um protagonismo pelo menos idêntico
ao que assumira no início do caso e queixou-se, até, de ter sido aliciado por
um dos advogados da defesa, João Barros, para não comparecer no julgamento.
Teve, como resposta, um anúncio de processo-crime e, finalmente, um destaque
que lhe permitiu sobressair com um título assim: «Deputada do PSD acusada de
tomar parte na alegada vendeta da Guarda — Ângelo envolve Marília» (Público, 13/10/95). Apenas porque Ângelo
decidira invocar quem já tinha sido rejeitado pela própria acusação por falta
de credibilidade, José Manuel do Amaral, o «Roupinhas», meses depois de esse dossier ter sido fechado! Ouçamos
Ângelo, em discurso directo:
«Logo no início, quando fui ouvido
na PJ, telefonaram para a minha ex-mulher, dizendo que alguém ia pagar tudo
aquilo que eu estava a fazer. Posteriormente, fui contactado pelo Amaral [José
Manuel Amaral, um cadastrado conhecido por “Roupinhas”], que me disse que a
Dra. Marília [deputada do PSD e mulher de João Raimundo] e o Dr. Abílio Curto
[presidente socialista da Câmara da Guarda] lhe tinham oferecido uma verba de
30 mil contos para me matar e ao Jacinto Dias. Posteriormente, confirmou-me
que, efectivamente, tentaram aliciá-lo, tendo dito mesmo que eu ainda iria
morrer na minha própria quinta» (Público,
19/10/95).
A importância dada a Ângelo de
Trancoso entra, de certa maneira, em conflito com a pouca atenção que é dada ao
que se passa na sala de audiências. A maioria dos jornalistas, talvez por
acreditar totalmente na eventual bondade da acusação, não parece ter-se
preocupado em seguir o próprio julgamento. E, no entanto, o muito que haveria
para contar... e para perguntar!
Vejamos um único exemplo. Eis o que
diz, a certa altura, uma testemunha de Granja da Fonseca, Fernando Lopes,
militante do PS e, mais tarde, governador civil: «Julgava eu que, no meu
partido algumas coisas andavam muito mal mas, afinal, no PSD andava tudo muito
pior. Confidenciou-me o meu amigo, Dr. Júlio Sarmento [presidente da Câmara
Municipal de Trancoso] que, nessa altura, a ordem de trabalhos no PSD era
sempre só: à Dra. Marília Raimundo não foi só preciso derrotá-la, o que é
preciso é humilhá-la». E quando o juiz lhe pergunta quem dizia isso, insistindo
que ele estava sob juramento e que devia responder e inquirindo-o mesmo se se
trava de alguém ali presente, a testemunha respondeu: «Não. O mandante ainda
não o ouvi citar. Mas toda a gente sabe que é o Dr. Álvaro Amaro, é claro...».
Esta afirmação não causou qualquer
celeuma ou desmentido.
O julgamento, só termina quando, em
6 de Novembro, é lida a sentença, assinada pelos três juizes, Fernando Gaito
das Neves, António Vieira Marinho e Paulo Eduardo Cristão Correia.
Em 39 páginas, é historiado o
processo e são dados como provados 131 factos.
Por exemplo: que quando João
Raimundo foi nomeado presidente do IPG em 1985, «o Sindicato dos Professores da
Região Centro insurgiu-se contra a nomeação»; que Jacinto Dias, João Gonçalves
e António Soares Gomes, tendo apoiado a candidatura de Álvaro Amaro, quando
«anteriormente sempre tinham apoiado Marília Raimundo», foram considerados
«traidores» por Dr. João Raimundo, que «referiu, por diversas vezes, ao co-arguido
Luís Brígida que os indivíduos referidos (...) mereciam uma sova» e que este
«afirmou para o Dr. João Raimundo que arranjaria alguém para que poderia
executar tal tarefa, isto é, dar as sovas pretendidas».
O tribunal, note-se, não dá por
provado aquilo que se pode ler nas transcrições das gravações: «que tivesse
sido Ângelo do Nascimento a induzir o arguido Luís Brígida a vingar-se também
dos que houvessem prejudicado o seu “chefe”» e «que tivesse sido Ângelo do
Nascimento a sugerir a Luís Brígida o nome do Exmo. Juiz Dr. Granja da Fonseca
como uma das pessoas a abater».
Sobre os mil contos, o tribunal não
dá também por provado que essa quantia tenha sido dada pelo pai de Brígida ao
filho e declara o dinheiro como «depositado nos autos» e «perdido» (a favor do
Estado) sem que nada ateste do seu paradeiro.
E afirma, ainda, não ter sido
provado «que o arguido Luís Brígida tivesse mantido um relacionamento sexual
com uma tal Manuela Vidal» que, por sua vez, «em Julho de 1994, tivesse
confidenciado ao arguido Luís Brígida que, igualmente, tinha um envolvimento
sexual com o Dr. Jacinto Dias» e que «também tivesse confidenciado ao Dr.
Jacinto Dias qualquer envolvimento com Luís Brígida». Se é possível comentar
que, a haver caso, ele se ficara por intimidades de prova eventualmente
impossível (por, presumivelmente, envolverem apenas duas pessoas...), também
convirá recordar o modo como esta pista foi quase apagada no decurso do
processo.
Ei-la, assim, vitoriosa em toda a
linha, a tese da «lista negra», a que surgira desde o início na Comunicação
Social, que a PJ avançara e que o Ministério Público perfilhara.
Como vitoriosa é, também, a tese de
que, fingida a agressão a Jacinto Dias (e apesar das propostas de Ângelo do
Nascimento), deve ser Brígida a assumir — com João Raimundo como «mandante» — o
ónus de escolher os nomes da «lista negra» e as datas mais oportunas para as
agressões.
Quanto à «lista negra», o tribunal
faz o que a PJ não conseguira fazer: define-a. E indica seis homens, excluídos
os nomes de segunda linha que ainda tinham aflorado na Imprensa: Álvaro
Guerreiro, Bernardo Duarte, Jacinto Dias, Granja da Fonseca, João Gonçalves e
Soares Gomes, todos «pessoas que, na perspectiva do arguido Dr. João Raimundo,
o haviam prejudicado politica, pessoal e profissionalmente».
E ainda acrescenta que a hipotética
agressão — cuja concretização o próprio Tribunal diz ter sido «fingidamente»
aceite por Ângelo — tinha por objectivo «provocar-lhes medo, assustá-los e
castigá-los por posições anteriormente assumidas, assim os intimidando». Por
isso, pode a sentença consagrar que: «... a vontade culpável, isto é, dolosa,
quer na tentativa quer no crime consumado, se nos apresenta como valorável de
forma igual».
A sentença, criado este quadro, é
baseada numa consulta a seis dicionários e a alguma doutrina.
Cai por terra a acusação de
terrorismo, por não haver perturbação da paz pública, e cai a da «forma
tentada». Mas já sobeja, enquadrado pelo novo Código Penal desse mesmo ano, o
crime de ofensas corporais com dolo de perigo, multiplicado por seis pessoas,
operação numérica que, dando mais realce ao juiz por ser juiz, atribui três
anos de prisão a João Raimundo e dois anos de prisão a Luís Brígida, tempo do
qual haverá que descontar a prisão preventiva. Sem qualquer piedade: a pena não
é, sequer, suspensa.
Quanto ao pedido de indemnização
cível de Bernardo Duarte, não se dá como provado que tivessem sido João
Raimundo ou Luís Brígida os autores das alegadas (e nunca cumpridas) ameaças e,
como tal, não só não dá razão a Bernardo Duarte como o condena ainda a pagar as
custas do respectivo processo.
«A mentira, pela força da
repetição, torna-se verdade e, por vezes, história» — a frase de João Raimundo
serve bem de comentário a esta sentença, embora não seja a única reacção a
registar.
A mais forte é, naturalmente, a da
defesa, que endereça, como recurso, ao Supremo Tribunal de Justiça uma das suas
peças mais notáveis. Regressemos à pena de Nuno Godinho de Matos:
«Se Deus existir, pode passar a
tomar os seus cuidados e reservas, pois, apesar da sua omnipotência, na Terra,
os tribunais portugueses têm o poder de transformar em factos ocorridos
hipóteses de eventos que nunca se chegaram a verificar. O poder de criar
partindo do nada já não é um privilégio divino, é um atributo da faculdade de
decidir o que está ou não provado, subsumindo, depois, os factos ao direito.
«Este processo é pródigo em lições
de metafísica e de direito penal, destacando o recorrente, com o devido
respeito, a seguinte frase, lapidar e brilhante síntese dos princípios básicos
de direito penal:
«“E, por assim ser é que a vontade
culpável, isto é, dolosa, quer na tentativa quer no crime consumado, se nos
apresenta como valorável de forma igual.”
«Por força deste princípio, se o
mesmo foi bem compreendido, em tese geral, ou em sede de ofensas corporais,
caso dos autos, a tentativa merece a mesma censura ética ou penal que a dada ao
crime consumado.»
É deste modo que o recurso se
apresenta, nele se submetendo três hipóteses para a correcção da decisão do
Tribunal da Covilhã. Uma é a absolvição. A outra é a que o Supremo Tribunal de
Justiça finalmente acolherá: «se assim não se entender, hipótese que só se
formula à cautela (...) deverá a mesma sentença ser anulada, anulando-se,
aliás, todo o processado desde o termo do inquérito, incluindo a acusação do
Ministério Público, por a mesma ter sido elaborada com base nas ilegais
gravações, já controvertidas no recurso próprio». Finalmente, «se assim não se
entender, hipótese que só se formula à cautela, então deverá ser a mesma
sentença ser anulada, anulando-se todo o processado incluindo o despacho que
designou a data para julgamento, a fim de se proceder a novo julgamento, sem os
vícios de resposta à matéria de facto e de fundamentação da formação da
convicção do Tribunal, patenteados pela presente sentença». E ver-se-á, em
Janeiro de 1999, como o Supremo Tribunal de Justiça acolherá a segunda hipótese
proposta por Nuno Godinho de Matos.
O recurso da defesa tem 40 páginas
bem fundamentadas. A começar pela observação de que não houve tentativa, quer
se considerassem o terrorismo quer as ofensas corporais, no Código Penal de
1982 ou no de 1995:
«... Em ambos os diplomas, para
haver tentativa, é necessário que os actos praticados sejam de natureza a
consumar o crime, só não se verificando o mesmo porque algo alheio à vontade do
possível criminoso fez com que a consumação não se verificasse.
«Isto é, para haver tentativa de
execução do crime, o possível agente do mesmo, para lá de desejar os efeitos do
crime, tem de praticar actos que provoquem o resultado criminoso. Por exemplo,
disparar uma espingarda carregada com pólvora e projéctil contra a vítima da
tentativa de homicídio; contudo, o projéctil, por bater numa parede, não atinge
a vítima. Isto, sim, é tentativa! O crime foi desejado e foi executado só que
não aconteceu o homicídio porque existia uma parede onde a bala bateu, razão
pela qual não atingiu a possível vítima, a qual, porque não foi atingida,
deixou de ser vítima.
«Aqui não há vítima do crime, mas
há tentativa da prática do crime. Suponhamos, agora, que a mesma espingarda
está carregada de pólvora seca. O agente desfere cinco tiros contra a vítima,
ouvem-se cinco estrondos, ao mesmo tempo e com raiva grita — matei-te,
malandro! Contudo, a pólvora era seca e a dita vítima não só não sofreu coisa
alguma como, rindo-se, pode retirar a espingarda ao “candidato a homicida”.
Neste caso, houve tentativa de crime? Sendo a pólvora seca e não sendo as balas
concretas daquela espingarda idóneas a provocarem a menor lesão, quer no corpo
humano, quer em qualquer outro produto material, há ou não tentativa da prática
do crime?
«Salvo melhor opinião, só por erro
se poderá defender o contrário. Obviamente não há tentativa. O crime, apesar de
intensamente desejado, era impossível. Aquele meio, embora com a aparência de
idóneo, não era, de facto, idóneo. (...) Não há tentativa de crime porque o
crime desejado era impossível.» [Recordemos que Ângelo do Nascimento não quis
praticar o alegado crime, fosse ele terrorismo ou ofensas corporais.]
O problema, aqui, é outro e a
defesa aponta-o, certeiramente: «O problema, neste processo, resulta da sua
repercussão nos órgãos de Comunicação Social e do facto de, por erro de
qualificação dos factos, os arguidos terem estado mal presos preventivamente,
com a acusação de tentativa de terrorismo. Não fossem estes antecedentes e,
seguramente, os meritíssimos senhores juízes, autores do acórdão recorrido, não
teriam cometido os involuntários erros evidenciados no texto...»
Recordando como Ângelo «estava a
procurar reunir prova das intenções de Luís Brígida para, no mínimo, a mostrar
ao Dr. Álvaro Guerreiro», a defesa salienta que «Ângelo não só nunca teve a
mínima intenção de agredir fosse quem fosse como, muito pelo contrário, Ângelo
estava empenhado em impedir que tal sucedesse». Como o próprio afirmou em
julgamento.
E também não há tentativa porque,
para que ela existisse, «Brígida e Ângelo teriam de ter recrutado um terceiro
agente do crime que, real e deliberadamente, não fingidamente, se dispusesse a
bater em Jacinto Dias».
«A emboscada verdadeira, não
fingida, teria de ser montada e no exacto momento da consumação da agressão,
então, e só nesse momento, a polícia aparecia e dava voz de prisão ao real e
voluntário infractor. É assim que actuam os agentes da polícia infiltrados»,
explica Nuno Godinho de Matos.
A defesa também desmonta a tese da
«lista negra», recordando que «somente quanto a Jacinto Dias existiu uma ordem
de acção e de bater, somente quanto a ele foi acordada a pretensa acção. Somente
em relação a ele, o tribunal menciona os factos descritos no n.º 77 (partir o
braço a Jacinto Dias), 78 (existência de dinheiro para esse trabalho), 81
(descrição de Jacinto Dias e a dos locais por ele frequentados), 82 e 84
(indicar a casa).»
«Quanto a todas outras pretensas
vítimas», continua a defesa, «não existe qualquer factualidade como a acima
mencionada, isto é, quanto a todas as outras pretensas vítimas, apesar das
insistências de Ângelo, apesar das provocações ao crime por ele consumadas, apesar
da incitação ao crime, como está provado e resulta dos n.os 102, 104, 107, 108 (a
iniciativa do encontro é de Ângelo)...»
«Pode o colectivo aprovar a
instigação ao crime cometida por Ângelo?», interroga-se a defesa, depois de
rejeitar, por falta de provas, a «lista negra», nela incluída Granja da
Fonseca.
E conclui: «Mesmo admitindo a tese
de que houve tentativa de ofensas corporais, o que não sucede, então, tal só
seria possível quanto à “vítima” Jacinto Dias, a qual, no uso do seu direito de
dispor do seu físico veio, expressamente, antes da leitura da sentença,
renunciar a qualquer direito ao procedimento crminal contra os arguidos ora
recorrentes, o que é quanto basta para nunca poder haver punição.»
Refutando o dolo de crime alegado
na sentença, a defesa acusa o tribunal de fazer «interpretações extensivas» da
lei, ao agravar as punições através da figura do dolo de perigo. E avança:
«O que o tribunal não soube foi
verificar se os actos dados como provados eram ou não idóneos à produção do
resultado desejado. Essa é que é a questão. Não se ignora que na tese do
tribunal houve dolo, e dolo muito intenso. Contudo, quando chegamos ao domínio
dos actos exteriores de execução do crime, eram os mesmos idóneos à produção do
resultado desejado pelos arguidos (segundo a tese da sentença, tese que se
repudia)? Óbvia e comprovadamente não!»
Aceitando, como hipótese, que «o
convite a Ângelo de Trancoso para bater em pessoas fosse idóneo a provocar uma
agressão em quem quer que fosse (...) e [que] tudo o mais estivesse provado», a
defesa objecta que só se estaria perante a tentativa da prática do crime de
ofensas corporais simples.
No Código de 1982, esse ilícito
seria punido com prisão até dois anos, no de 1995 com prisão até três anos. Só
que, neste caso, por força da redacção do art.º 23.º, a tentativa nem seria
punida e, por isso, os cinco crimes de tentativa (salvaguardando Jacinto Dias)
não poderiam ser punidos.
E, ainda quanto à lei, sustenta
Nuno Godinho de Matos: «Note-se que não foi por acaso que até à elaboração da
sentença os anteriores magistrados que procederam à acusação e ao despacho de
pronúncia acusaram e pronunciaram mal, imputando o crime de terrorismo. É que,
mau grado o dito dolo que o tribunal entende estar provado, a lei não permite
punir os factos não efectivamente ocorridos. Esta é que é a realidade que não
se quer reconhecer.»
Depois, a defesa contesta:
«Trata-se duma pena totalmente desproporcionada com a prática da jurisprudência
portuguesa, é uma pena que parece odienta, que, numa reflexão menos atenta, se
poderia qualificar de contra o homem. Sobretudo se pensarmos que nem sequer foi
suspensa. Pretende-se voltar a mandar para a cadeia um cidadão sobre o qual o
tribunal escreveu o constante no art.º 126 da matéria de facto [«O arguido João
Raimundo tem tido bom comportamento social antes e depois dos factos.»].
Porquê? A cadeia corrige alguma coisa? Serve para alguma coisa? Teme-se que os
recorrentes cometam quaisquer outros crimes? Ou, simplesmente, pretende-se
dizer à Comunicação Social que os tribunais também enviam os ricos para a
cadeia? A prisão não foi concebida para ser usada como medida de retaliação
“revanchista”, nem tal uso dessa medida é legal ou legítimo. Em que mundo e
país estamos nós?»
A defesa argumenta, ainda, com a
existência de numerosas nulidades processuais, lamentando que a sentença não dê
«os motivos de direito que determinaram o tribunal a aplicar uma pena tão
brutal, não suspensa e [que], acima de tudo (...) não esclarece quais foram as
provas que permitiram dar os factos como provados ou não provados».
Aliás, a defesa põe, depois, em
destaque que «não se sabe quais foram as provas que serviram de estribo à
decisão (...) nem as testemunhais, nem a prova documental», visto que «lendo as
actas da audiência, de fio a pavio, isto é, desde a primeira até à última,
nelas não se cita a leitura e análise dum único documento».
Ou seja: «O tribunal, como ele
próprio escreve, valorizou documentos não analisados, nem submetidos a
contraditório na audiência».
É, novamente, a questão das
gravações que, tendo sido polemicamente aceites, estão em causa e que não
foram, sequer, objecto de leitura ou de análise em tribunal. Sendo essenciais
para a conspiração e para a acusação, não tiveram mais uso. O que legitima a
pergunta: terá o tribunal, a certa altura, desconfiado do seu conteúdo?
A resposta à interpelação da defesa
só vai ser dada pelo Supremo Tribunal de Justiça três anos e dois meses depois
do julgamento.
Parte IV
Actos de justiça
CAPÍTULO 11
A PRIMEIRA VITÓRIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Realizado o julgamento, em 1995, e
interposto o respectivo recurso, João e Marília Raimundo esperam. Esperam pelo
resultado do recurso da sentença que transformara o crime de terrorismo na
forma tentada em crime de ofensas corporais e, ainda, pelo resultado do recurso
interposto contra a sentença de Granja da Fonseca no «caso Bernardo Duarte»,
julgado no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda.
Tem que passar mais de um ano desde
o julgamento para que, em Fevereiro de 1997, o Supremo se pronuncie sobre a
sentença de Granja da Fonseca. Em causa não está só uma sentença desfavorável a
João Raimundo. Está, sobretudo, a confirmação de que o caso de Bernardo Duarte
contra João Raimundo era a chave para o processo da «lista negra» e para
consolidar a tese dos conspira-dores.
O Supremo Tribunal de Justiça não
deixa os seus créditos por mãos alheias e o acórdão de Fevereiro de 1997 faz
perceber como a maré começa a virar, ao anular todos os esforços feitos por
Bernardo Duarte para esmagar João Raimundo. Quase se pode dizer que este
acórdão acaba por condenar Bernardo Duarte e Granja da Fonseca e os homens da
«lista negra», os agentes Casaleiro e Portugal e o próprio Tribunal da Covilhã
(que perfilhara a tese das ofensas corporais)...
O acórdão — sobre a acusação de
Bernardo Duarte que, directa e indirectamente, está na origem do processo que
levara João Raimundo à prisão — responde à letra ao recurso apresentado por
João Raimundo.
Recordemos que o Tribunal da
Guarda, presidido por Granja da Fonseca, acolhera favoravelmente as queixas de
Bernardo Duarte, condenando João Raimundo por autoria moral de um crime de
abuso de poder e de um crime de falsificação de documentos.
No acórdão, datado de 12 de
Fevereiro desse ano, o STJ absolve João Raimundo do crime de falsificação,
observando que o acórdão do Tribunal da Guarda «envolve erro de julgamento
porque resulta de defeituosa qualificação jurídica da matéria de facto
provada».
No que se refere ao crime de abuso
de poder, o STJ anula o julgamento e decreta o envio do processo para novo
julgamento, porque o acórdão da Guarda também «encerra um erro de julgamento»
e, nele, «a matéria de facto provada é insuficiente, por si mesma, para a
decisão alcançada».
O acórdão do STJ, independentemente
da sua qualidade jurídica e do significado que tem para a família Raimundo,
ainda debaixo de fogo, faz luz sobre alguns dos pressupostos em que assentaram
muitas das acusações feitas a João Raimundo no processo da «lista negra».
O caso suscitado por Bernardo
Duarte vem já, recorde-se, do ano lectivo de 1983/84, quando João Raimundo
fazia o estágio para profissionalização como professor mas disciplinas de
Contabilidade e de Cálculo Financeiro (6.º grupo do ensino secundário).
Por ser dirigente sindical, na
altura presidente do Sindicato dos Professores da Zona Centro, João Raimundo
requereu ao Ministério da Educação uma redução de horas lectivas, o que foi
aceite, com um resultado que se traduziu na redução de seis tempos semanais.
João Raimundo estava, nesse ano
lectivo (1983/84) na Escola Secundária da Sé, onde Bernardo Duarte era delegado
à profissionalização na disciplina de Português. Considerando que a redução era
um privilégio e gerava desigualdades, Bernardo Duarte fez saber que não
atribuiria classificação a João Raimundo enquanto a situação se mantivesse.
Em Maio de 1984, a redução foi
cancelada, a pedido do próprio João Raimundo, que não tornou a pedi-la.
Apesar disso, o Tribunal da Comarca
da Guarda chega a dar como provado que João Raimundo ficou com «animosidade»
contra Bernardo Duarte, com este (apoiado pelo tribunal) a defender que a sua
posterior exclusão de um concurso para o IPG se devia à má-vontade de João
Raimundo.
O concurso fora aberto em Julho de
1986, praticamente um ano depois de João Raimundo ocupar a presidência do IPG,
através de um edital publicado no Diário
da República, II série, de 9 de Julho de 1986, e destinava-se ao
recrutamento de docentes profissionalizados dos ensinos preparatório e
secundário para orientadores da profissionalização em exercício na Escola
Superior de Educação do Instituto Politécnico, sem que, com isso, ficassem
integrados nos quadros do instituto.
No edital, assinado por João
Raimundo como presidente da comissão instaladora, indicavam-se como condições
preferenciais a posse de um dos cursos referidos no 1.º escalão, de
habilitações próprias para o respectivo grupo e na área específica da
disciplina a que concorresse, a prática docente de, pelo menos, três anos no
grupo e disciplina a que concorre e experiência de formação de professores.
No n.º 9 do edital, informava-se
que a apreciação das candidaturas seria feita por um júri constituído por
despacho do presidente da comissão instaladora do IPG.
O júri foi constituído por Manuel
Alberto Prata, Joaquim Quadrado Gil e Abel Joaquim Pereira, todos professores
da Escola Superior de Educação do IPG.
No n.º 10, avisava-se que assistia
ao júri o direito de promover entrevistas com os candidatos para complemento da
informação. O edital terminava com o n.º 11, segundo o qual da decisão do júri
não cabia recurso, salvo houvesse vício de forma. Esse edital, anota o acórdão,
não sofreu qualquer impugnação.
Bernardo Duarte concorreu à vaga de
Português tanto para o então ensino preparatório como para o ensino secundário.
Mas, publicada a lista ordenada da classificação dos concorrentes, verificou
que estava classificado em segundo lugar no 8.º grupo A do ensino secundário e
que fora excluído do 8.º grupo B do secundário e do preparatório.
Insatisfeito com a decisão,
Bernardo Duarte recorreu e foi graduado em segundo lugar no 8.º grupo B. O
resultado desagradou a Bernardo Duarte, que se considerou «irregularmente
preterido» e vítima de uma «vingança» de João Raimundo, que também o teria
atingido economicamente, já que o lugar de orientador da profissionalização no
IPG lhe daria um salário superior.
Acusando directamente João
Raimundo, Bernardo Duarte completou a sua denúncia do que considerou ser abuso
de poder e falsificação de documentos (o que teria dado origem ao seu
afastamento) com a distribuição dos panfletos muito críticos contra João
Raimundo.
O Tribunal da Guarda deu razão a
Bernardo Duarte, condenando João Raimundo como autor material e os três membros
do júri como cúmplices mas esta decisão levantou dúvidas ao STJ.
«Sem a actuação do júri, o primeiro
arguido [João Raimundo] não tinha possibilidade de prejudicar o assistente
[Bernardo Duarte] do concurso. Qualquer graduação dos concorrentes da sua
exclusiva autoria estaria ferida de nulidade por emanar de órgão materialmente
incompetente», escreve-se no acórdão do Supremo.
Nele, aborda-se, a seguir, a
suposta animosidade de João Raimundo contra Bernardo Duarte, dando-se como
provados os factos em que insistia Bernardo Duarte mas com uma ressalva:
«Os factos provados não consentem,
logicamente, a conclusão de que o arguido sentia animosidade contra o
assistente e, movido por esse sentimento, concebeu a ideia de o afastar a todo
o custo do concurso.
«Na verdade, os factos narrados
(...) apenas revelam que, entre 1983 e 1985, o assistente praticou uma acção má
contra o primeiro arguido.» Ou seja, é Bernardo Duarte o acusado,
indirectamente, de, ao pôr em causa a autorização para a redução do tempo
lectivo de João Raimundo, ter praticado «uma acção má».
E prossegue o STJ:
«Os fenómenos psíquicos, como a
animosidade, o ódio ou a amizade, pertencem ao foro íntimo, são inapreensíveis
directamente, só por outros factos, externos, podem ser revelados. Faltando
este facto externo, a ilação não é possível.
«Por isso, da acção praticada pelo
assistente contra o primeiro arguido anteriormente não pode deduzir-se, sem
mais, a existência de animosidade daquele arguido contra o assistente e muito
menos a prática dos actos imputados. O acto aversivo do assistente contra o
primeiro arguido e os factos a este imputado não são reveladores dos seus
sentimentos em relação ao primeiro.
«A ilação extraída pelo acórdão
recorrido enferma do vício de petição de princípio.»
O STJ chama, ainda, a atenção para
uma outra discrepância, que se prende com a constituição do júri de que
Bernardo Duarte se queixa:
«... Antes de nomeado o júri, o
primeiro arguido (João Raimundo), com a colaboração do Dr. Martins da Fonseca,
seu assessor, preparou critérios de admissão, selecção e exclusão dos
concorrentes (...) Com base em tais critérios, o Dr. Martins da Fonseca seriou
os concorrentes conforme o plano elaborado com o Dr. Raimundo.
«Portanto, ainda não havia júri
constituído e já a lista de graduação dos concorrentes se encontrava feita,
aguardando apenas a assinatura dos membros do júri e a publicação do Diário da República.
«E o Dr. Martins da Fonseca não foi
incluído entre os agentes do crime!»
O STJ detêm-se, a seguir, no uso do
advérbio «designadamente», que revela que os critérios citados «não foram os
únicos considerados na graduação dos candidatos». E conclui: «Contudo, não
foram indicados os demais critérios seguidos pelo primeiro arguido com o
auxílio do Dr. Martins da Fonseca.»
«Por outro lado», continua o
acórdão, «tratando-se de factos secretos por natureza e sujeitos a prova
testemunhal, não se vê, na falta de confissão dos arguidos, como chegaram ao
conhecimento do tribunal, em audiência de julgamento. Os factos descritos (...)
carecem dos atributos necessários aos elementos, essenciais ou acidentais, do
facto ilícito típico, não fazem parte da estrutura deste.»
A questão dos critérios é
completada com uma outra observação esclarecedora: «As entrevistas pelo júri
aos candidatos eram permitidas, conforme o n.º 10 do edital, e, competindo ao
primeiro arguido a nomeação dos membros do júri, naturalmente que ele sabia o
momento da constituição do mesmo. Cabia ao júri desmarcar as entrevistas
consignadas se as entendesse desnecessárias.»
Neste quadro, o STJ observa que as
conclusões do primeiro tribunal encerram «meras conclusões, as quais, a fim de
fornecerem alguma utilidade, careciam de se apoiar em factos que lhes servissem
de premissas». E conclui: «Mais uma vez nos encontramos perante presunções
judiciais infundamentadas. Eram os membros do júri pessoas tão sem escrúpulos e
sem dignidade que se prestassem a sevir de meros “paus mandados” do Dr.
Raimundo? O n.º 40 revela que “os arguidos são tidos como pessoas rectas e
honestas», o que, de alguma forma, contradiz aquela conclusão e sugere uma
resposta negativa».
A queixa de Bernardo Duarte,
relativamente ao segundo lugar, é, também, objecto de comentário:
«O concurso, por definição, não se
compadece com lacunas de regulamentação nem com graduações “ex aequo” de concorrentes. A graduação impõe que um degrau seja
ocupado por um só candidato, a fim de ser garantida a preferência reconhecida a
cada candidato em relação aos demais. O concurso é uma competição incompatível
com classificações “ex aequo” porque
cada vaga abrangida pelo concurso não pode ser preenchida simultaneamente por
mais de um concorrente.
«Por isso, o júri tinha poderes
para estabelecer regras gerais e abstractas, aplicáveis por igual a todos os
candidatos, destinadas a suprir as lacunas do edital, respeitando os princípios
a que obedecem os concursos: justiça, igualdade, liberdade e imparcialidade
(art.º 4.º do Decreto-Lei 44/84, de 3 de Fevereiro).
«Porque se tratava de concurso
documental, haveria que, em primeiro lugar, cotejar os currículos de todos os
candidatos. “In casu”, o tribunal devia comparar o currículo do assistente com
os dos candidatos que o ultrapasaram.
«O acórdão recorrido não fornece
elementos a este respeito e, assim, não se pode saber qual seria o resultado de
tal cotejo. Manter-se-iam, ou não, as graduações publicadas?»
Em suma, determina o STJ sobre o
crime de abuso de poderes:
«O acórdão recorrido, entre a
matéria de facto provada, não contém dados bastantes para se ajuizar da
ilicitude da conduta dos arguidos nem da potencialidade causal dessa conduta
para a produção do evento jurídico, ou seja, a graduação do assistente em 2.º
lugar, quando teria direito ao 1.º lugar, nos dois grupos, no concurso aberto
por edital publicado no DR, II série,
de 9/7/86.
«Donde se conclui que a matéria de
facto provada é insuficiente para a decisão condenatória, relativamente ao
crime de abuso de poderes porque os arguidos foram condenados, pelo que a
decisão recorrida enferma do vício previsto na alínea a) do n.º do art.º 410.º
do Código do Processo Penal.»
E, assim, é anulado o julgamento
nesta vertente.
Quanto ao crime de falsificação,
que poderia explicar a exclusão de Bernardo Duarte, o acórdão do STJ coteja os
actos do júri com a forma como eles foram anunciados e com os documentos (as
actas) que os contêm. E inter-roga:
«Então, por que razão duvidar da autenticidade
de tais documentos? Se os membros do júri assinaram aquelas actas, livres de
coacção física, e se não existe desconformidade entre o conteúdo das actas e a
realidade, eles não podem enfermar de falsidade intelectual. Aliás, trata-se de
documentos dispositivos, porque contêm declarações de vontade destinadas a
produzir efeitos jurídicos na esfera jurídica dos candidatos. Por isso, são
insusceptíveis de falsidade intelectual. E falsidade material, não se vê como
possa ser equacionada sem terem sido descritos os respectivos elementos
objectivos do crime, indicados na norma incriminadora.
«Os documentos (...) são tão
verdadeiros que correspondem às listas das graduações publicadas no Diário da República, indicadas na
fundamentação do acórdão recorrido.
«Os membros do júri assinaram os
dois documentos denominados “actas” e as deliberações que, segundo as actas, o
júri tomou, foram efectivamente tomadas. Apenas é duvidoso que o júri tenha
deliberado em reunião, pois ignora-se se as assinaturas foram apostas no mesmo
momento e local. Basta, porém, uma resposta positiva para se concluir pela
existência da reunião, pois a lei não exige fomalismo especial da mesma. É um
facto juridicamente irrelevante.
«O encontro do júri, em qualquer
local, para deliberar sobre os resultados do concurso e assinar a acta, vale
como reunião.»
Finalmente, as conclusões extraídas
pelo STJ não deixam margem para dúvida:
«Em suma: percorrendo toda a
enumeração dos factos considerados no acórdão recorrido e procurando
iluminá-los com a respectiva fundamentação, não se obtém luz suficiente para
entrever a existência de fundamentação suficientemente alicerçadora da matéria
de facto provada.
«Tal vício, que relativamente ao
crime de abuso de poderes se integra na previsão da alínea a) do n.º 2 do art.º
410.º do Código do Processo Penal, já em relação ao crime de falsificação
encerra um erro de julgamento. Com efeito, acolá a matéria de facto provada é
insuficiente, por si mesma, para a decisão alcançada. Esta nasceu logicamente
incorrecta porque ultrapassa o âmbito das premissas. Na parte concernente à
falsificação, porém, a decisão recorrida envolve erro de julgamento porque
resulta de defeituosa qualificação jurídica da matéria de facto provada.
«Em consequência, divergem os
regimes processuais aplicáveis: no primeiro caso, há lugar ao reenvio do
processo, nos termos dos artigos 426.º e 436.º do Código do Processo Penal; no
segundo caso, pura e simplesmente à absolvição dos arguidos.
«Pelo exposto, acorda-se em
conceder provimento ao recurso dos arguidos, absolvendo-os do crime de
falsificação, nesta parte revogando o acórdão recorrido, e anulando o
julgamento e actos posteriores relativamente ao crime de abuso de poderes,
ordenando-se, em consequência, o reenvio do processo para novo julgamento, nos
termos dos artigos 426.º e 436.º citados.»
O julgamento relativo ao alegado
abuso de poder é deslocado para o Tribunal de Celorico da Beira e, aí, termina
com uma conclusão lapidar: o caso já prescrevera. Só fica a dúvida sobre se não
teria sido preferível repetir o julgamento, para ficar clara a derrota do
queixoso Bernardo Duarte...
Mais uma vez, em flagrante
contraste com a abundante produção de notícias sobre o «caso» Bernardo Duarte,
a Imprensa quase ignora, nesse mês de Fevereiro, a decisão do Supremo Tribunal
de Justiça. É legítimo deixar a pergunta: o que vale mais para a opinião
pública? O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ou os títulos que davam João
Raimundo como condenado pelas acusações de Bernardo Duarte e, por esse motivo,
ansioso por uma vendetta?
CAPÍTULO 12
A SEGUNDA VITÓRIA NO SUPREMO
O Supremo Tribunal de Justiça volta
a pronunciar-se, desta feita sobre o recurso relativo ao julgamento da Covilhã,
o da “lista negra”, em Janeiro de 1999. E João Raimundo tomou conhecimento do
acórdão por volta das cinco horas da tarde desse dia 14 de Janeiro, em plena
Praça do Comércio, em Lisboa, à porta da secretaria do Supremo.
Tinham passado quatro anos e dois
meses desde a sua prisão e, perante a ausência de fotocópias do texto, a informação
naquele momento disponível — a decisão de «anular todo o processado a partir da
acusação, inclusive» — parecia-lhe difícil de acreditar: não se mandava repetir
o julgamento, não era confirmada a sentença, não havia absolvição — era tudo
pura e simplesmente anulado. Tal como o defendera, desde o início, o advogado
Nuno Godinho de Matos.
E quando, a pouco a pouco, João e
Marília vão percebendo o verdadeiro significado da decisão do Supremo, mais
simples e, simultaneamente, mais complexa do que se poderia esperar, a alegria
explode e invade-os, contagiando amigos e familiares que, de perto e de longe,
vão tomando conhecimento das conclusões da Justiça através de uma frenética
actividade de telemóveis nas arcadas da Praça do Comércio, à porta do STJ.
Isso tudo porque o Supremo
considerara, de facto, ilegais as gravações e, já que eram elas a base da
acusação do Ministério Público (e da PJ, convém recordar), acusação e
julgamento ficavam anulados. Como explicava Nuno Godinho de Matos,
discretamente feliz: na prática, se o Ministério Público assim o entendesse,
que fosse arranjar outra acusação ou outras provas.
A decisão do Supremo é, aliás,
lapidar:
«a) Declarar a nulidade das
gravações, por constituírem meios de prova ilegais, e declarar inadmissíveis os
meios de prova pessoal que nelas directamente se baseiam e, consequentemente,
ordenar que sejam retiradas do processo as respectivas transcrições;
«b) Anular todo o processado a
partir da acusação, inclusive;
«c) Julgar prejudicado o
conhecimento das demais questões suscitadas nos recursos.»
As conclusões partem da doutrina e
da sua aplicação à matéria de facto, com o Supremo Tribunal de Justiça a
afirmar que «não vemos que o argumento baseado na superioridade dos bens
jurídicos conexos com a protecção da integridade física e da vida, sejam de
molde a dirimir a ilicitude penal da conduta consubstanciada na gravação em
causa».
E acrescenta-se:
«Por um lado, porque não é essa a
finalidade que, apertis verbis,
motiva a actuação da testemunha Ângelo Nascimento; o que se diz tão somente é
que aquele foi ao encontro munido de um mini-gravador “para assim poder
registar as conversas que iria manter com o arguido Luís Brígida, a fim de
poder comprová-las junto daquele advogado a quem já tinha dado conhecimento da
situação”.
«Por outro lado, não vemos que o
requisito “actualidade de perigo” possa razoavelmente subsistir no confronto
com a restante factualidade apurada.
«Não só, como já se disse, o Dr.
Álvaro Guerreiro estava a par dos acontecimentos, como era conhecedor das
conversas havidas entre o Ângelo do Nascimento com o Octávio Mendes e Mário
Nascimento onde genericamente as “encomendas do trabalho” haviam sido feitas.
«Do mesmo modo, foi avisado de um
encontro a realizar três dias depois entre o Ângelo do Nascimento e o arguido
Luís Rogado.
«De tudo foi também dado
conhecimento ao Dr. Jacinto Dias, tendo ficado combinado fazer-se constar
publicamente que este último havia sido agredido para assim convencer o Rogado
de que o Ângelo do Nascimento “já havia iniciado os trabalhos”.
«Vale dizer, por outras palavras,
que houve o tempo necessário para que as instâncias formais de investigação e
perseguição criminal pudessem ter actuado não só prevenindo, obstando ou
sustendo as referidas agressões “encomendadas” ou projectadas, como igualmente
tomando as medidas legalmente admissíveis à respectiva obtenção da prova dos
factos.»
Além destes factores, o Supremo
encontra ainda outras razões que não permitem a invocação de um perigo para
legitimiar as gravações:
«Não se pode obnubilar, com efeito,
que é o próprio Ângelo do Nascimento quem tem o domínio do facto, no sentido de
tais agressões se concretizarem ou não; isto é, neste sentido, apenas teria que
contra si reagir para as afastar, como não se pode passar em branco, sem lhe
extrair as devidas e legais consequências, a circunstância de que a partir do
momento em que aquele se apercebeu de que um dos visados era o seu amigo Dr.
Álvaro Guerreiro, “não mais pretendeu concretizá-las”.
«Por isso e entre parêntesis, pode
até notar-se, noutro plano que não interessa agora concretizar, que nunca se
poderia esquecer que para haver tentativa é sempre necessário que exista um
qualquer acto de execução por parte do seu autor material e que “autor moral” é
aquele que determina outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução
ou começo de execução. (...)
«Não havendo assim um perigo a cuja
actualidade e premência houvesse que fazer face, resulta clara a insubsistência
da “justificação” pretendida à luz de um eventual confronto de valores.
«A normalidade das coisas e as
razões de experiência apontam, pois, para que as finalidades das gravações
efectuadas no contexto acima referido se destinavam a servir um qualquer
propósito de “documentação” das respectivas situações, com finalidades, já à
altura prováveis, mas que indiscutivelmente se concretizaram, de utilização
processual.
«Mesmo concedendo, ainda que a um
nível meramente teórico, na licitude da realização das referidas gravações, nem
por isso a solução deixaria de ser diferente no caso particular da sua
reprodução para efeitos de proibição de prova.
«É que, se à luz do Código Penal de
1982, era discutível o exacto alcance a conceder ao inciso “as gravações a que
se refere a alínea anterior” constante do art.º 179.º n.º 1, al. b),
resulta insofismável, em face da al. b) do n.º 1 do art.º 199.º do Código
revisto, que mesmo que aquelas fossem lícitas, ainda assim se manteria a
exigência do consentimento para que a sua reprodução não caísse na alçada do
respectivo tipo incriminatório.
«Mais: na decorrência da teoria
dita “dualista”, que a Doutrina entende agora ali consagrada, as causas de
justificação porventura existentes ao momento da gravação não se comunicariam
automaticamente ao momento da reprodução, maxime, por não perdurarem no tempo.
«Como consabidamente estas não
existiam ab initio, não se
verificaram por qualquer razão superveniente e não existiu consentimento, não
podiam as referidas gravações ter sido utilizadas, como o foram no processo,
para efeitos probatórios.»
E conclui o Supremo:
«Do que se deixa dito resulta que:
«— Sendo nulas as gravações como
método proibido de prova, há que declarar essa nulidade e ordenar que se
expurguem dos autos as respectivas transcrições e bem assim todos os meios de
prova pessoal que directa e expressamente estejam condicionados pela existência
daquelas.
«— Há que declarar a nulidade de
todo o processado a partir da acusação, inclusive, porque a mesma está
inquinada pelos reflexos daquela nulidade.
«Isto não só porque, ela própria,
se pronuncia pela legalidade das gravações, mas também porque pelo menos parte
da factualidade que transcreve assenta no conteúdo delas e ainda porque arrola
esses meios ilegais de prova.»
O acórdão foi a etapa final do
exame do caso pelo Supremo Tribunal de Justiça, que incluiu uma audiência,
prolongada, em 17 de Dezembro de 1998, onde os advogados de João Raimundo e de
Luís Brígida compareceram perante uma bancada de nove juízes-conselheiros.
Aí, também, assistiu-se a uma
última tentativa por parte do Ministério Público, protagonizada pelo
procurador-adjunto Simas Santos, de reintrodução do argumento de «estado de
necessidade» para justificar as gravações, numa intervenção, pouco veemente, de
50 minutos. Mas em vão. Nuno Godinho de Matos, que estava acompanhado por
Castanheira Neves e por Rodrigo Santiago (em representação de Brígida),
recuperou, com ênfase, toda a argumentação que utilizara antes e que aplicara,
em especial, no requerimento instrutório, recordando que as gravações tinham
sido feitas «não para defesa de um eventual crime» mas «para poder usar contra
terceiros» e que o crime era impossível, atendendo à anunciada recusa de Ângelo
em fazer aquilo que garantia ter sido o pedido de Brígida.
E é esta a tese que encontra eco no
acórdão assinado pelo juiz-conselheiro Nunes da Cruz, justificando e dando
razão à opção de Nuno Godinho de Matos de concentrar todas as atenções nas
gravações, de cuja ilicitude já não pode haver dúvidas.
Ao afastar do processo as
gravações, o Supremo Tribunal de Justiça destruiu, de uma assentada, toda a
argumentação do Ministério Público e da PJ e colocou-os perante um dilema
simples: o único meio de prova é a palavra de uns (Ângelo de Trancoso primeiro,
alguns homens da «lista negra» depois) contra a de outros (Brígida, com quem ele
falou, e João Raimundo, que sempre negou ter inspirado Brígida). No próprio
dia, os homens da «lista negra» escusam-se, significativamente, a declarações e
só Soares Gomes se aventurou a reagir, lamentando, em breves palavras, o que
seria o trabalho — deitado à rua — da PJ.
A anulação da condenação decretada
pelo Tribunal da Covilhã voltou a não ter qualquer paralelo com o clamor dos
agitados dias de Novembro de 1994.
Lusa, jornais, rádios e televisões
afinaram, algo secamente, pelo mesmo diapasão: tudo anulado, com o processo a
voltar «à estaca zero» e algumas alusões à existência de uma «lista negra» de
potenciais vítimas. E nem uma palavra se deixou para reconhecer que alguém
errara ou se deixara induzir em erro...
Só um jornal se destacou, a 15 de
Janeiro, de entre o tom cauteloso e de pouco arrependimento, que predominou.
Em A Capital, a perspicaz Helena Sanches Osório não esqueceu o assunto
de que já diversas vezes se ocupara e contou tudo nas suas páginas centrais:
como as gravações tinham sido obtidas e eram ilegais, como Marília fora «vítima
de inveja partidária» (recordando o «caso Roupinhas») e como «Marília e João
Raimundo viram as suas carreiras políticas e profissionais destruídas por
vingança de camaradas de partido». Ninguém se arriscou a dizer que não era essa
a verdade.
CAPÍTULO 13
A VITÓRIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A decisão proferida pelo Supremo
Tribunal de Justiça em Janeiro de 1999 não agradou ao Ministério Público, que
dela interpôs recurso para o Tribunal Constitucional. Ao fazê-lo, alegou apenas
que, no seu acórdão, o Supremo «interpretara/aplicara» normas do Código do
Processo Penal e dos Códigos Penais de 1982 e 1995 contrárias aos artigos 32.º,
n.º 8, 24.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, da Constituição.
A resposta do Tribunal Constitucional
foi cirúrgica e precisa:
«...A situação, no caso, vai para
além do que, por omissão de razões de impugnação, se considera — e bem — como
falta de alegações; o que se produz como alegações é uma peça em que,
expressamente, no seu texto e conclusivamente, se adere ao que se decidiu no
acórdão recorrido [o acórdão do STJ].
«Trata-se de um caso em que a
apresentação de alegações se deve substancialmente equiparar à sua falta com os
efeitos previstos no artigo 690.º, n.º 3, do Código do Processo Civil.
«A isto não poderá opor-se que a
vontade impugnatória e a definição do objecto do recurso estão suficientemente
expressas no requerimento de interposição formulado pelo magistrado do
Ministério Público junto do STJ e que a posição assumida nas alegações traduz
apenas a divergência do magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal
que as subscreveu.
«Na verdade, recorrente é sempre o
Ministério Público como instituição unitária, sendo irrelevante que, por força
da tramitação própria do recurso de constitucionalidade, sejam diferentes os
magistrados que subscrevem as duas peças.
«Por outro lado, as exigências
específicas do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade
(artigo 75.º-A, n.os 1 e 2 da Lei do Tribunal Constitucional) não
invalidam o que o legislador pretende com o ónus de alegar — desde logo a
exposição e desenvolvimento das razões de impugnação — sendo certo que o
próprio teor das conclusões, que devem constar das alegações e delas fazem
parte integrante, podem restringir o objecto do recurso.»
E a conclusão é, aqui também,
lapidar: «Pelo exposto e em conclusão, julga-se deserto o recurso por falta de
alegações.»
Este acórdão, de onze páginas,
proferido em Julho de 2000, fecha o processo aberto nesse longínquo ano de 1994
e tem o significado de uma saborosa vitória para João e Marília Raimundo e para
Nuno Godinho de Matos e de uma derrota para o Ministério Público. O que se
compreende: qual era, de facto, a solidez da gravação daquelas tão insólitas
conversas? Como é que podiam sustentar a prisão de uma pessoa sem cadastro nem
comportamentos impróprios? Como é que se podia formular uma acusação de
terrorismo apenas com base nisso?
A vitória obtida nas duas
instâncias de recurso (Supremo Tribunal de Justiça e Tribunal Constitucional)
fecha, de certa forma, o «caso da “lista negra”». Embora não inteiramente. Não
poderia ser, aliás, de outra maneira, visto que os mecanismos da lei remetem
tudo à origem, por a anulação decretada pelo Supremo abranger «todo o
processado a partir da acusação». Por isso, o processo regressou ao tribunal da
Covilhã (onde decorrera o julgamento). Este remeteu-o, por sua vez, para o
Ministério Público, na Guarda, onde fora concebido.
O assassínio político do cidadão
João Raimundo, embora consumado na Comunicação Social, revelou-se, afinal, um
crime perfeito... ligeiramente imperfeito.
CAPÍTULO 14
SETE ANOS DEPOIS
João
Raimundo é professor coordenador do Instituto Politécnico da Guarda na
Escola Superior de Tecnologia e Gestão. Abandonou o PSD em 1995, durante a
presidência transitória de Fernando Nogueira.
Observador atento da vida do
instituto, mantém uma distância crítica relativamente a todas as vicissitudes
que agitaram a instituição. Se é natural que toda a gente pense, com sentidos
diversos, num seu regresso à presidência, o próprio afasta liminarmente a
hipótese, preferindo dedicar-se, fora dos tempos lectivos, à consolidação da
Associação de Beneficência Augusto Gil, instituição privada de solidariedade
social do distrito da Guarda, a que preside.
Em 1998, publicou o livro Reforçar o Ensino Politécnico — Desenvolver
a Guarda, uma colectânea de 25 discursos proferidos entre 1985 e 1994 na
qualidade de presidente da comissão instaladora do Politécnico, de professor e
de sindicalista. Em 2000, publicou Páginas
do Nosso Futuro, uma memória histórica do ensino politécnico no distrito.
Ainda sente o peso da publicidade
negativa de que foi objecto na Imprensa e mantém que não é totalmente verdade
que «quem não deve não teme». E só os seus mais próximos sabem que, nas horas
livres, se dedica à pintura.
Marília
Raimundo, depois de deixar a Assembleia da República na sequência das
eleições legislativas de 1995, regressou como professora de Inglês à actividade
docente na Escola Secundária Afonso de Albuquerque, na Guarda, onde se tornara
professora efectiva.
Em 1997, actualizou a sua inscrição
no PSD mas nunca mais participou em nenhuma actividade desenvolvida pelo
partido.
Fez crónicas radiofónicas
periódicas na emissora regional Rádio F e tem mantido alguma intervenção
pública a nível cívico e cultural.
Cabe-lhe o mérito de, em
circunstâncias muito difíceis, ter conservado a lucidez e a coragem.
Nuno
Godinho de Matos continua a sua actividade como advogado, incansável,
discreto e ainda crente na Justiça, aliando sempre à sua acção como advogado
uma atenção quase clínica para com os seus clientes mais fragilizados. Continua
a ser membro da Comissão Nacional de Eleições, em representação do PS, e
porta-voz deste órgão de fiscalização. Além dos laços profissionais, unem-no
agora a João e Marília Raimundo relações de amizade.
Álvaro
Amaro regressou nas eleições legislativas de Outubro de 1999 à
Assembleia da República, onde entrara como deputado nas eleições de 1995. Foi,
com o PSD de Marcelo Rebelo de Sousa, um dos vencedores do referendo à
regionalização mas perdeu, em 1998, as eleições para a direcção da comissão
política concelhia do PSD vendo o seu candidato derrotado pelos restantes
militantes laranja. Foi candidato na
lista do PSD às eleições para o Parlamento Europeu em Junho de 1999, em posição
não elegível, deixando de poder ser de novo presidente da comissão política
distrital (os estatutos só permitem três mandatos consecutivos).
Granja da
Fonseca não voltou, como juiz, à Guarda, estando colocado no Tribunal
da Relação de Lisboa.
Álvaro
Guerreiro é vereador eleito pelo PS na Câmara Municipal da Guarda com a
actual presidente, Maria do Carmo Borges, sendo vereador substituto da
presidente.
Jacinto
Dias regressou ao seu lugar de técnico superior do Instituto
Politécnico da Guarda.
António
Soares Gomes deixou o lugar de deputado, na bancada do PSD, e reformou-se
como técnico superior do Instituto de Emprego e Formação Profissional.
João
Gonçalves trocou o seu lugar de delegado do Ins-tituto da Juventude pelo
de professor de Trabalhos Manuais mas, sem dar aulas, pôde ser destacado como
delegado na cidade de um sindicato docente de criação recente.
Bernardo
Duarte reformou-se e continua a residir na Guarda. O pedido de
indemnização cível, que dirigiu ao Supremo Tribunal de Justiça como recurso
depois de o ver recusado pelo Tribunal da Covilhã, foi também anulado com o
processo de João Raimundo. O seu advogado, José Martins Igreja, presidente da
Assembleia Municipal eleito pelo PS em 1997, também advogado de José Manuel
Amaral, o «Roupinhas», não logrou convencer os conselheiros do Supremo.
Em 16 de Março deste ano, o
Tribunal da Relação de Coimbra confirmou o que as outras instâncias já tinham
decidido, ao rejeitar um novo recurso (com pedido de indemnização) que lhe foi
dirigido por Bernardo Duarte, em sentença cujo relator foi o juiz António
Vieira Marinho, um dos juízes que condenara João Raimundo na Covilhã. O antigo
sacerdote recusou-se a fazer comentários à sentença, tendo tido que ouvir do
homem que perseguira durante 14 anos um único comentário: «A justiça dos
tribunais, a justiça dos homens, foi feita. Acredito que a justiça divina
far-se-á a seu tempo» (Nova Guarda,
23/03/00).
Gabriel
Correia mantém-se na direcção da Rádio Altitude que o Governo pôs a
concurso ainda sem resultados concretos. Os tribunais deram razão aos processos
em que, com outros jornalistas da Rádio Altitude, o responsável pelas notícias
desta emissora foi condenado por difamar João e Marília Raimundo, tendo-lhe
sido penhorada uma parte do salário para pagar a indemnização e as custas dos
recursos (que foi pondo e que viu serem recusados).
Ângelo de
Trancoso e José Manuel Amaral (o
«Roupinhas») prosseguem as actividades empresariais que os caracterizaram, com
o primeiro transformado em vedeta mediática, aparecendo no Expresso de 11/11/00 como «infiltrado» ao serviço da PJ, numa
entrevista onde faz a seguinte afirmação: «Da parte da Polícia Judiciária há
muita cobardia. Quando é necessário fazer alguma coisa pelo bufo, como eles lhes
chamam, ninguém sabe de nada, afastam-se. Ficamos pendurados pela parte da
Polícia e pela parte dos criminosos». Nem a Polícia Judiciária nem o Ministério
da Justiça reagiram às queixas de Ângelo do Nascimento.
O
Ministério Público ainda não se pronunciou sobre a devolução à
procedência do processo, ordenada pelo Supremo Tribunal de Justiça e confirmada
pelo Tribunal Constitucional.
Luís
Brígida retomou as suas funções de motorista no Instituto Politécnico
da Guarda, já não ao serviço directo da presidência mas no quadro geral de
motoristas.
Abílio
Curto, condenado por corrupção, já não se candidatou à Câmara da
Guarda em 1997. O Supremo Tribunal de Justiça confirmou a pena. O PS voltou a
ganhar as eleições autárquicas desse ano mas com Maria do Carmo Borges,
vereadora de Abílio Curto a tempo inteiro, assegurando 5 vereadores contra 2 do
PSD.
Bento Leal deixou o
Instituto Politécnico da Guarda, depois de ter sido objecto de um processo
disciplinar instruído pela Inspecção-Geral da Educação. Sucedeu-lhe José Alves,
eleito presidente do Instituto em Junho de 1998. A eclosão de diversos
conflitos internos, que dividiram os professores e que puseram os estudantes
contra a direcção do IPG paralisaram as aulas na Escola Superior de Tecnologia
e Gestão durante quase todo o primeiro período lectivo de 1999/2000. Nunca,
desde a sua criação, o Instituto Politécnico da Guarda teve uma vida tão
agitada e tão preenchida por polémicas internas.
Manuela
Ferreira Leite foi eleita deputada pelo PSD em 1995, manteve o lugar
em 1999 e tornou-se um dos vice-presidentes de Marcelo Rebelo de Sousa e do
grupo parlamentar. Dominando, pelo PSD, os debates sobre assuntos de economia,
não se eximiu a intervir de passagem em debates sobre educação. É presidente da
Comissão Política Distrital de Lisboa do PSD.
Cavaco
Silva e Fernando Nogueira,
os presidentes do PSD que precederam Marcelo Rebelo de Sousa, seguiram
percursos diferentes, o primeiro como candidato (derrotado) à Presidência da
República em 1996, contra Jorge Sampaio, mantendo intervenções políticas
esporádicas. O segundo mergulhou no silêncio de um dos maiores grupos bancários
portugueses. Sucedeu-lhes, por pouco tempo, Marcelo Rebelo de Sousa que cedeu o
lugar, depois, a José Manuel Durão Barroso.
Paulo
Portas, o entusiástico director de O Independente que chamou a João Raimundo «Al Capone das Beiras», é
presidente do CDS/Partido Popular e deputado. De par com Marcelo Rebelo de
Sousa, foi o grande animador da «Alternativa Democrática», tentativa de
repetição da Aliança Democrática de Francisco Sá Carneiro que, há 20 anos,
elegera Marília Raimundo como deputada à Assembleia da República. Em 1999,
figurou nas primeiras páginas de alguns jornais nacionais como tendo recebido
remunerações muito elevadas no centro de sondagens da Universidade Moderna, em
Lisboa, que incluíam o uso de um carro de luxo. Nenhum órgão de Comunicação
Social lhe chamou «Al Capone» ou envolveu nenhum membro de sua família no caso
e não lhe foi movida nenhuma acusação. O assunto estará na base da sua ruptura
com Marcelo Rebelo de Sousa, na Primavera de 1999.
As «fontes
policiais» continuam a ser abundantemente citadas pela Imprensa para
justificar a divulgação de notícias, rumores, boatos, calúnias e outras
informações, incluindo suspeitas e acusações, oficialmente em segredo de
justiça, que atingem, indiscriminadamente, inocentes ocasionalmente sob
suspeita e criminosos mais tarde confirmados como tal pelos tribunais.
A Justiça continua a
ser considerada um sector em crise. José Vera Jardim, o ministro da Justiça do
primeiro governo de António Guterres (1995 — 1999) foi substituído no cargo por
António Costa no governo saído das eleições de Outubro de 1999. O
primeiro-ministro é o mesmo. O fim da «crise» não é, ainda, visível.
Amadora,
Setembro 1997 — Fevereiro de 2001